segunda-feira, 2 de maio de 2022

Vítima da Síndrome

*Publicado nesta data em coletiva.net

Um dos princípios basilares  da crônica  é que na falta de assunto o assunto tem que ser a falta de assunto.  Todo o escriba condenado a escrever com prazo fixo e espaço determinado está subordinado a esse princípio.  É inacreditável que haja uma profusão de assuntos  a pipocar  ao nosso lado, merecendo uma abordagem desdobrada no chamado texto escorreito, gostoso de ler e comentar, mas que não se materializa em crônica se não houver uma interferência cerebral, às vezes por inspiração divina.

O complicação começa em encontrar o enfoque que vai mexer e remexer com corações e mentes, ser assertivo nas suas posições, mas condescendente e judicioso nos julgamentos, mostrar alguma originalidade, sustentar a  relevância do cotidiano, não abusar dos adjetivos e advérbios,  atentar para as redundâncias, mas dar aquele colorido às frases que serão a base da riqueza do texto e não um amontoado de parágrafos,  meros  ocupadores do espaço em branco. Não tem fórmula pronta, que é mais uma armadilha do que um caminho.

Essa é uma trava tão recorrente, que recebeu até um nome: Síndrome da Folha em Branco. Como se fosse um vírus, ela me contaminou quando busquei assunto para a participação semanal em coletiva.net. A angústia durou até apelar para o princípio que abre esta crônica.

O Google oferece até estudos acadêmicos com várias sugestões para superar a dificuldade, mas aí também falta inspiração e nada do que se lê vai fazer a diferença. Os exemplos são mais ilustrativos. Consta que sempre que empacava num texto, nosso cronista maior, Luiz Fernando Veríssimo, apelava para uma rodada de Paciência no computador.  Parece que funcionava, junto com o pânico confesso e acelerador pela proximidade do deadline para entrega do texto.    relatos mais dramáticos, como o de um jornalista contando sobre um critico de música que passou horas tentando passar para a lauda a crítica sobre uma ópera. Não conseguindo foi até o banheiro e logo se ouviu disparo. Quando lá chegaram, ele estava morto.  Pode ser mais uma daquelas histórias, de difícil  comprovação, que circulam pelas melhores redações e, às vezes, servem de mote para um cronista sem assunto. 

Mesmo Stephen King admite o terror da página em branco, com o perdão do trocadilho com o gênero que  consagrou o prolixo escritor. Ele transfere a frustração de enfrentar uma folha vazia a pelo menos três livros adaptados para o cinema. Um exemplo é O Iluminado, em que o personagem interpretado por Jack Nicholson começa a escrever um livro e durante um mês se debate com uma página em branco na máquina. A receita de King para encarar o bloqueio é “sentar e sair escrevendo”. Simples assim, mas com o respaldo de um talento de 60 livros publicados que venderam mais de 400 milhões de cópias e renderam uma fortuna estimada em R$ 2,2 bilhões.

Gostaria ser  bafejado, despretensiosamente com uma pequeníssima parcela, dessas aptidões para criar enredos, gerar sucesso e muita grana.  Por enquanto, só o que consegui foi ser vitima também da síndrome, o que não deixa de ser um sinal de maturidade para este cronista bissexto. A Síndrome da Folha em Branco é para os fortes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário