segunda-feira, 23 de maio de 2022

O cinema orgulhosamente apresenta: Os Clichês

*Publicado em coletiva.net em 23/05/2022

Sou cinemaniaco desde os tempos das matines do cine Ritz, no bairro Petrópolis. Hoje,  os cinemas de calçada acabaram e as salas que resistem estão homiziadas na segurança dos Shoppings, enquanto cresce a oferta dos serviços de streaming.  Para manter o hábito cultivado há tempos  e que se consolidou na época do “fique em casa”, de assistir a pelo menos um filme por dia, assino três serviços: o Now Clube, o Netflix e Amazon Prime. Custa uma grana, em compensação tenho acesso a um extenso cardápio de filmes e séries, de variados gêneros e países.

O que existe em comum nos filmes é a linguagem cinematográfica, iniciada quando os irmãos Lumiére fizeram a primeira projeção em 1895 e aperfeiçoada em longo dos anos para ajudar no entendimento da narrativa. São convenções quase universais. Mas chamam a atenção, sobretudo na produção hollywoodiana, algumas singularidades nos filmes, os clichês mais utilizados e as soluções pouco inventivas nos roteiros, observadas pelo meu olhar atento e treinado para os detalhes.

Um detalhe clássico é o do  casal que compõe as cenas de rua e está sempre presente, passando ao fundo ou as vezes rapidamente em primeiro plano. Faça chuva ou faça sol - e já vi até em nevascas – aquele casal aparece como quem não quer nada. Só falta olharem pra câmera e dizer “hei, estamos aqui”. Há variações com um  caminhante solitário ou mais de um casal, mas acredito que o objetivo seja o mesmo, o de “encher” a cena.

Ah, e aquelas situações que abusam pela repetição, como a tomada em que um personagem leva um tiro ou é atropelado e a primeira pessoa que chega junto ao corpo, estendido no chão, berra para os circunstantes: “Alguém chame um médico”, terceirizando o que ele mesmo poderia providenciar. Outra circunstância muito freqüente, que serve para aumentar a tensão em filmes de ação: o fugitivo, mocinho ou não, está quase encurralado, os inimigos vem chegando, mas ele fica retardando a fuga, discutindo com um parceiro ou parceira, ou resolvendo uma inutilidade qualquer. E a gente torcendo para que ele vá embora logo, mas pensando: “Dessa vez ele não escapa”.  Até que o sujeito decide fugar por onde menos se espera. Ufa, que alívio!

Tem o caso da garotinha ou da adolescente, que correm riscos porque um chefão quer se vingar do pai delas e as abobadas fazem tudo ao contrário do que  recomendaram, até serem localizadas e aprisionadas pelos bandidos.  Aí o pobre pai vai lá encarar sozinho um bando de malvados e leva a melhor depois de cerrado tiroteio. Não esquecer a trilha nervosa no clima da ação e aquela meiguice  sonora quando o homem resgata sua filhota, que merece uma bronca, mas que recebe, no máximo, aquele abraço, com ela, arrependida da burrada, se debulhando em lágrimas.

Aliás, quando ocorrem os confrontos, as armas tem munição inesgotável, os revólveres são mais eficazes que as metralhadoras e a pontaria do justiceiro é sempre melhor do que a dos bandidos. E de onde saem tantos comparsas quando a fortaleza dos malfeitores é invadida? Parecem se reproduzir, durante as trocas de tiros, como se fossem gremlins.

Fico intrigado também com aquele olhar de desprezo ou rancor que a mulher dedica ao homem sentado à mesa, ou vice versa, depois de uma DR ou discussão qualquer. Reparem: ele ou ela está cruzando a porta e dá aquela viradinha na cabeça e lança o olhar 45. Outra situação recorrente: no diálogo entre dois atores, normalmente um casal que está iniciando a relação, um deles informa que perdeu o pai ou a mãe, e o outro emenda um “oh, I’m sorry”, mesmo que o passamento tenha se dado há um, dois ou mais anos. E faz um olhar compungindo.

Eu queria ter a sorte do personagem que, com seu carrão, sempre consegue vaga para estacionar, justo na frente de onde precisa ir, mesmo que seja em Manhathan. E do sexto sentido de quem liga a TV bem na hora em que está começando a importante notícia ou a fala vital para o roteiro.  Deve ter alguma explicação para as transas debaixo das cobertas mesmo no mais quente do verão, sem contar o lençol que cobre os seios da mocinha recém desvirginada ou nem tanto.

Na real, o que me surpreende mesmo na safra atual de filmes é que os personagens masculinos e femininos voltaram a fumar e a beber de forma adoidada. A maconha corre solta, inclusive para senhorinhas, provavelmente saudosas da geração Woodstock.  O que não entendo  é porque no balcão dos botecos o pessoal  bebe  cerveja no bico. Não tem copos nos EUA? Sei lá, acho que o gesto reforça a masculinidade nos homens e significa igualdade para as mulheres.  Será isso mesmo?

Nada, porém, supera aquela legenda de Motel ou Hotel logo abaixo da placa luminosa de...motel ou hotel.  Existe ainda as versões Hospital diante do letreiro do...Memorial  Hospital e o Ambulância na frente da van cheia de cruzes vermelhas, giroscópio e sirene a mil. Essas interferências inúteis devem ter alguma explicação que eu, pelo menos, não consigo alcançar.

Mais inútil que tais interferências, só este texto, que não mudará a vida de ninguém, nem vai acabar com os clichês dos roteiristas do cinemão. Pois é, mas até eles reconhecem quando abusam dos lugares comuns, como mostra a produção  “Clichês de Hollywood: o Cinema como você sempre viu” (Attack of de Hollywood Cliches, no original) uma brincadeira com trechos de filmes famosos, auto-explicável no título. Apresentação de Rob Lowe, no Netflix. Saber rir de si mesmo também pode ser uma arte, com ou sem roteiro.

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