Foi só tratar de desapego que o pessoal se atiçou,
propondo que o tema enveredasse para o desapego amoroso, digamos assim. Fui subsidiado por variadas receitas para enfrentar esse que parece ser um mal da modernidade
nas relações interpessoais. Surgiram teses as mais absurdas e muitos relatos de
situações ocorridas, algumas francamente escabrosas, que omitirei. Mais adiante, relato um episódio, só que da
categoria papai-mamãe, sem obscenidades.
Dos subsídios que recebi, inúmeras manifestações
culpam as redes sociais pelo distanciamento entre as pessoas, o que levaria ao
descarte da interação pessoal e daí ao desapego
seria um passo. Não faltaram os
que atribuíram à Rede Globo boa parcela das ocorrências porque seus conteúdos contribuem para a dissolução das
famílias e dos bons costumes. Claro que coxinhas e petralhas se acusaram
mutuamente, os primeiros afirmando que
desapego é uma atitude tipicamente de comunistas (“Olha o que está acontecendo
com a Venezuela!”), enquanto os
outros garantem que desapegar é
coisa de fascista (“E fora Temer”,
acrescentam).
Como não tenho
mais paciência para esses embates,
recorro a história ocorrida com dileto amigo deste desencaminhante blogueiro.
Sucede que ele e a namorada tiveram uma briga feia e a moça, decidida e um tanto ressentida com o
rompimento provocado pelo parceiro, resolveu devolver os mimos que havia
recebido durante os tempos apaixonados da relação. O nosso amigo relata que não
foi a atitude dela que o magoou profundamente, mas a embalagem que continha as
mimosuras - cartões, bilhetes amorosos, livros, Cds
românticos, brincos e colares e até uma calcinha preta, fetiche dele.
- Era uma caixa de papelão, provavelmente usada para embalar desinfetantes ou coisa que o valha.
Isso é coisa que se faça com uma pessoa que havia representado muito na vida
dela? Ainda por cima mandou um bilhete escrito ‘desapeguei-me’, vê se pode! -
lamuriava-se.
Mas a fase lamurienta não demorou muito e ele partiu
para o contra-ataque. No dia seguinte esperou anoitecer e, de campana na rua
onde a ex morava num desses sobrados geminados, quando ninguém mais circulava
pelas imediações, aproximou-se da casa e jogou a caixa de papelão no pátio da
frente. E fugou com o coração acelerado, mas exultante com o que
considerava uma façanha, ainda mais que dentro da caixa incluíra um recado;
“desapeguei-me do teu desapego”.
Mal havia retornado a sua casa quando o celular tocou.
Era ela. Furiosa.
- Como tu invade minha privacidade e joga coisas no
meu pátio?!
Aquele “coisas” doeu no ouvido e no coração dele. As mimosuras, provas de amor tão carinhosamente ofertadas,
agora eram reduzidas a “coisas”. Mas ele
não deixou transparecer a mágoa crescente, somatório de “coisas” mais o
acondicionamento numa caixa de papelão ordinário. Seguiu-se uma inicialmente
furiosa discussão, que se transformou em DR menos colérica e, por fim, na
marcação de um encontro para acerto de contas no dia seguinte.
No encontro, aconteceu o que ambos esperavam, a reconciliação. Voltaram a
compartilhar cama e mesas, afinal, uma
relação tão intensa, capaz de gerar tanta energia, não seria desfeita
por um desapego qualquer. Sou testemunha de que até hoje o casal resiste impávido a todas as
crises e, cá entre nós, firmei convicção de que o amálgama da parceria foi aquela sessão de desapego, de duas vias, mesmo embalada por uma reles caixa de
papelão,
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