terça-feira, 6 de março de 2018

Desapego, a polêmica




Foi só tratar de desapego que o pessoal se atiçou, propondo que o tema enveredasse para o desapego amoroso, digamos assim.  Fui subsidiado por variadas receitas para  enfrentar esse que parece ser um mal da modernidade nas relações interpessoais. Surgiram teses as mais absurdas e muitos relatos de situações ocorridas, algumas francamente escabrosas, que omitirei.  Mais adiante, relato um episódio,   que da categoria papai-mamãe, sem obscenidades.

Dos subsídios que recebi, inúmeras manifestações culpam as redes sociais pelo distanciamento entre as pessoas, o que levaria ao descarte da interação pessoal e daí ao desapego  seria um  passo. Não faltaram os que atribuíram à Rede Globo boa parcela das ocorrências porque  seus conteúdos contribuem para a dissolução das famílias e dos bons costumes. Claro que coxinhas e petralhas se acusaram mutuamente, os  primeiros afirmando que desapego é uma atitude tipicamente de comunistas (“Olha o que está acontecendo com a Venezuela!”), enquanto os  outros  garantem que desapegar é coisa  de fascista (“E fora Temer”, acrescentam).

Como não tenho  mais paciência  para esses embates, recorro a história ocorrida com dileto amigo deste desencaminhante blogueiro. Sucede que ele e a namorada tiveram uma briga feia e a moça,  decidida e um tanto ressentida com o rompimento provocado pelo parceiro, resolveu devolver os mimos que havia recebido durante os tempos apaixonados da relação. O nosso amigo relata que não foi a atitude dela que o magoou profundamente, mas a embalagem que continha as mimosuras  -  cartões, bilhetes amorosos, livros, Cds românticos, brincos e colares e até uma calcinha preta, fetiche dele.

- Era uma caixa de papelão, provavelmente usada para  embalar desinfetantes ou coisa que o valha. Isso é coisa que se faça com uma pessoa que havia representado muito na vida dela? Ainda por cima mandou um bilhete escrito ‘desapeguei-me’, vê se pode! - lamuriava-se.

Mas a fase lamurienta não demorou muito e ele partiu para o contra-ataque. No dia seguinte esperou anoitecer e, de campana na rua onde a ex morava num desses sobrados geminados, quando ninguém mais circulava pelas imediações, aproximou-se da casa e jogou a caixa de papelão no pátio da frente. E fugou com o coração acelerado, mas exultante com o que considerava uma façanha, ainda mais que dentro da caixa incluíra um recado; “desapeguei-me do teu desapego”.

Mal havia retornado a sua casa quando o celular tocou. Era ela. Furiosa.

- Como tu invade minha privacidade e joga coisas no meu pátio?!

Aquele “coisas” doeu no ouvido e no coração dele.  As mimosuras,  provas de amor tão carinhosamente ofertadas, agora eram reduzidas a “coisas”.  Mas ele não deixou transparecer a mágoa crescente, somatório de “coisas” mais o acondicionamento numa caixa de papelão ordinário. Seguiu-se uma inicialmente furiosa discussão, que se transformou em DR menos colérica e, por fim, na marcação de um encontro para acerto de contas no dia seguinte.

No encontro, aconteceu o que  ambos esperavam, a reconciliação. Voltaram a compartilhar cama e mesas, afinal, uma  relação tão intensa, capaz de gerar tanta energia, não seria desfeita por um desapego qualquer. Sou testemunha de que até  hoje o casal resiste impávido a todas as crises e, cá entre nós, firmei convicção de que o amálgama da parceria foi aquela  sessão de desapego, de duas vias,  mesmo embalada por uma reles caixa de papelão,


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