*Publicado em 10/04/2023 em coletiva.net
A caminhada prazerosa foi
interrompida por uma pergunta no mínimo funesta:
- Tu já tens onde cair
morto?
A troco do que um sujeito
parecendo gozar de boa saúde, tanto assim que está dedicado ao seu exercício
matinal cotidiano, levanta uma questão dessas, num momento e local tão
impróprios para tal.
De imediato, manifestei
minha contrariedade com a abordagem proposta, além da preocupação com a probabilidade
de o parceiro ter sido acometido de alguma moléstia grave, que estaria tratando
em segredo. Lembrei, mas só em pensamento, que estamos numa quadra da vida em
que a toda semana vem a informação da perda de alguém próximo, amigo, conhecido
ou familiar. Mas de pronto afastei o pensamento negativo para não me contaminar
por um clima funéreo numa bela manhã outonal. Não adiantou porque o parceiro em
seguida emendou o episódio ocorrido com um tio, recentemente falecido, e que
recebeu um magnífico velório, de cerimonial impecável, num dos crematórios da
cidade. Contou ainda que todos os que foram fazer a despedida ao finado ficaram
surpresos com o aparato que cercava o adeus final, uma vez que o referido tio e
seus familiares não eram pessoas de posse.
- Mas os filhos já tinham
adquirido um plano funeral e não precisaram se incomodar quando o tio veio a
falecer. Deu gosto de ver as coisas funcionando bem, o atendimento nota 10 da
equipe do crematório e aí comecei a pensar seriamente que talvez devesse deixar
tudo preparado para quando minha hora chegar.
Quase interrompi a
caminhada diante da preocupação futura do companheiro, mais interessado em
beneficiar os vivos com um bem sucedido velório do que o falecido, que na
situação em que se encontraria, não poderia desfrutar do atendimento prestimoso,
muito menos de eventuais mordomias oferecidas nessas ocasiões.
Pois, então me dei conta
de como evoluíram em prestação de serviços os procedimentos funerários atuais,
com menos aflições para as famílias. Os planos oferecem traslados, inclusive internacionais, sepultamento ou
cremação, locação de jazigo, liberação de documentos, preparação do corpo, urna
(caixão) ornamentada, coroa de flores, sala de velório com lanches, organização
de cortejo e, em alguns casos, benefícios adicionais como sorteios mensais de
prêmios em dinheiro e seguros para o futuro morto e seus familiares. Fiquei
sabendo que numa cidade do Amazonas a prefeitura até organiza um curso prático
de Cerimônia Fúnebre. Tem inclusive um cidadão, devidamente encaixotado,
fazendo o papel de morto para mais de 20 alunas.
Por aqui, posso atestar a
evolução das chamadas exéquias, porque tenho frequentado mais cemitérios e crematórios
do que gostaria, além de receber eventualmente propostas por telemarketing em que a simpática moça começa falando em evitar
problemas “naquele momento difícil”. Depois, sugere que pode ajudar na escolha do plano ideal para mim e
minha família, sem levar em conta que o
plano ideal para nós é continuar vivendo.
Gostaria de saber como o
telemarketing funerário chega a minha discreta pessoa com essas ofertas
sinistras. Onde vão coletar informações para se autorizarem a me ligar? Será
por causa da idade? Tiveram acesso a
exames médicos reservados? Ou ficaram sabendo de algum envolvimento meu em
situação escabrosa, que possa resultar em riscos de vida?
Na dúvida, talvez deva
prestar mais atenção na pergunta do amigo caminhante.
- Tu já tens onde cair
morto?
Pelo jeito, fui
contaminado pela morbidez iniciada com uma pergunta inconveniente numa bela
manhã de outono.
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