*Publicado originalmente em 19/10/2009 e não custa
alertar: é ficção.
Sivaldo, funcionário
público, meia idade, era muito preocupado com o que escreveriam no seu
obituário, se é que mereceria algumas linhas destacando sua trajetória pessoal
e profissional. Sabia que não haveria muito a dizer, além dos registros
obrigatórios, sua preferência clubística, onde trabalhou, um ou outro projeto
em que esteve envolvido, talvez a opinião generosa de algum ex-colega ou
familiar. Não, certamente ele não mudara o mundo nem influenciara pessoas.
O que Sivaldo
temia, na verdade, era a possibilidade de eventos com potencial de escândalo no
seu enterro. Traduzindo: presenças femininas indesejáveis. Por isso, tratou de
se prevenir e foi enfático na recomendação a seus irmãos e a um amigo de fé:
- Se aparecer
alguma mulher de óculos escuros, que vocês não conheçam, façam o que for
necessário para tirar ela do recinto. Não quero escândalo no meu velório.
A preocupação se
justificava. Queria preservar a família, a futura viúva e os filhos, de um
vexame na hora da dor. Ele não estaria lá para se explicar, a não ser
amorfamente como defunto, incapaz de reagir a um potencial barraco. Por isso,
insistia com os irmãos.
- Não quero
escândalo no meu velório. Cuidado com as mulheres de óculos escuros.
Tinha uma
implicância com mulher de óculos escuros em velórios e enterros. Achava que os
óculos encobriam olhares irônicos, cínicos ou ressentidos, próprios de uma ex,
em relação ao morto e os presentes no ato fúnebre. Olhares do tipo “eu sei que
vocês sabem quem sou e o que sei”.
Ainda estava vivo
na sua memória o acontecido com um parente, encontrado morto em circunstâncias
suspeitas – numa cama de motel, dentro do carro, jogado na rua, eram as
versões, mas sempre ressalvando que ostentava um último esgar de satisfação.
Sucede que no dia
do enterro do parente, um primo distante, apareceu a outra, calça jeans
apertada,com os temíveis óculos escuros, dos bem grandes, e um filho no colo,
exigindo seus “dereitos”. Não dava para negar a descendência: a criança, com
dois ou três anos, era a miniatura do defunto, o mesmo cabelo encaracolado, o
nariz levemente achatado e os olhos vigilantes do ex-parente. E a mãe ainda
batizara-o de Junior, agregado ao nome do “pai”. Cildo, de Oracildo, Junior.
Então, aconteceu a
cena clássica e patética. A mulher se debruçou sobre o caixão, com o Cildinho
chorando no colo e gritava:
- Me leva junto,
mor. A vida não tem mais sentido pra mim e pro Junior. Nós queremos estar
contigo para sempre. Leva a gente, mor! assim mesmo, na forma reduzida de amor.
Não se viu uma
lágrima derramada pela moça, talvez por causa daqueles enormes óculos de
camelô, certamente um presente do falecido. Mas a dramatização era convincente.
- O que vai ser de
mim e do Junior agora que ele nos deixou, choramingava a moça.
O velório virou um
fuzuê. A viúva teve um faniquito e os filhos do ex-parente, já taludos, queriam
partir para a agressão à incômoda visitante. Como mais alta autoridade presente
no recinto, foi chamado a intervir.
- Minha senhora,
permita que eu lhe explique algumas coisas, mas fora daqui, abordou jeitoso.
- O senhor não
entende. O que aconteceu foi uma desgraceira. O que será de mim e do Junior
agora, insistia a inconveniente.
O burburinho do
ambiente já tomava proporções incontroláveis e ele negociando com a moça.
- Minha senhora,
vamos lá fora conversar. O Oracildo falava muito bem da senhora e deixou
instruções para que a gente cuidasse do caso, se ele viesse a faltar, continuou
cerimonioso, insinuando providências prévias que nunca foram tratadas.
- Ah, é? Ele falou
de mim e do Junior? O que ele disse? O que ele pediu?
A moça agora
estava acesa com a possibilidade de algum legado deixado pelo falecido.
(continua)
Não se conhecem os desdobramentos futuros do caso, mas o fato é
que a moça se acalmou e se retirou do ambiente fúnebre, com o Junior a
tiracolo. Assim a família e os amigos puderem prantear seu ente querido sem
outras interferências. A família, na verdade, estava vexada com o incidente.
Todos sabiam que o falecido não era o que se poderia classificar de cidadão e
chefe de família exemplar, mas daí a constituir outro lar no paralelo passava
das medidas. Certamente o ocorrido já estava na boca do povo e seria motivo de
muitas conversas entre as comadres e nas mesas de bares, uma situação
insuportável. Já os amigos, testemunhas ou companheiros de algumas farras do
falecido, não estavam nem aí para o constrangimento da família. Nessa hora é
que a gente sabe quem são os verdadeiros amigos, pensou Sivaldo, com uma ponta
de amargura.
Todas essas
preocupações não saiam da cabeça do bom Sivaldo cada vez que imaginava como
seria sua passagem para outra dimensão. Tinha claro que a família seria a
principal vítima se houvesse algum escândalo como o ocorrido com o parente.
Coitados, teriam que administrar um legado inconveniente e indesejado. Foi
então que começou a fazer uma retrospectiva das vezes em que pulou a cerca,
tentando identificar potenciais fatores e pessoas de risco.
Ele tinha certeza
de que não apareceria nenhuma ex com filho no colo, a não ser que fosse
armação, que um simples exame de DNA desmentiria, embora não evitasse o vexame
e o diz-que-diz no velório. “Afasta-te de mim, pensamento diabólico”, dialogava
internamente. Sivaldo sabia que uma ex, no oficial ou no paralelo, era encrenca
para a vida toda, inclusive na hora da passagem para a vida eterna.
Ao passar a limpo
a vida pregressa, registrou poucas transgressões, mas algumas foram bem
escabrosas e outras bizarras. Ele lembrava bem o caso com uma contorcionista de
um circo mambembe, que conhecera num boteco após a matiné. A moça atuava também
como ‘partner’ do domador das feras e nas horas vagas fazia contorcionismos na
cama e ronronava como um felino. O caso durara exatos 15 dias, o tempo de
permanência do circo na cidade, mas suficiente para encontros diários num
hotelzinho barato perto de onde as lonas circenses estavam instaladas. Não,
pensou, essa não vai dar trabalho, o circo já deve ter sido desfeito e a moça
provavelmente está exercitando seu sotaque castelhano, com viés catarinense, em
outras plagas.
Depois veio o caso
com aquela ex-freira, carente de afeto e de sexo, que decidiu descontar com ele
os atrasados. O caso não prosperou por muito tempo porque a moça, ainda apegada
aos preceitos religiosos, recusou-se a atender um fetiche dele para comparecer
a um encontro vestida com o hábito de freira. Achava, entretanto, que a
ex-freira, até pela sua formação, não se prestaria a um escândalo, mesmo porque
agora dividia seus lençóis, devidamente casada, com um ex-seminarista.
Teve ainda aquele
caso com aquela garçonete que precisava tomar um longo banho após a lida no
restaurante e antes da lida sexual para minimizar o cheiro de fritura
impregnado no corpo dela. Mesmo assim, às vezes ele achava que estava transando
com uma batata frita ou um filé à parmegiana. Mais tarde, descobriu que ela
dividia seus favores sexuais também com o marido de uma amiga, conforme
confissão do próprio, o que conduzia a situação a um dilema: quem era o outro
da outra? A garçonete talvez viesse a incomodar, mas ele torcia para que o
marido da amiga fosse importunado em seu velório antes do que ele.
Registrava, com um
misto de saudade e preocupação, o caso com aquela socialite casada, que lhe
dava boa vida e todos os prazeres sexuais imagináveis. Foi o único caso com
mulher casada e o escabroso da história é que o marido sabia e aparentemente
não se importava com o relacionamento extraconjugal da mulher, tanto assim que
os encontros eram na bela cobertura do casal. O caso terminou no dia em que o
marido invadiu o quarto onde transavam e quis participar da brincadeira,
insinuando-se mais para o amante do que para a mulher. Aí já era muita
devassidão e Sivaldo tinha valores a preservar. A socialite, com sua coleção de
óculos escuros de todas as grifes, era um perigo em potencial.
Começou a pensar
em casos mais recentes e as preocupações aumentaram. Entre outros, houve aquele
envolvimento com uma colega mais moça, que ele lutou muito para conquistar e
depois viver uma relação de mais de três anos. Foi um relacionamento intenso e
tumultuado. Intenso porque se permitiam tudo e tumultuado porque eram muito
diferentes em quase tudo e só convergiam mesmo na hora do sexo. O rompimento
fora traumático e isso deveria acender o alerta, mas conhecia bem o estilo da moça
e ficava mais tranqüilo. Era uma dissimulada e se comparecesse ao enterro o
faria com muita discrição e um belo óculos escuros, só para ter certeza de que
estava mesmo morto.
Puxa, tão poucos
casos e tanta angústia. Mas só de pensar no assunto, começou a sentir fortes
dores no peito. “Será que chegou a minha hora?”, apavorou-se. “Vou ter que
ligar para os meus irmãos para alertar sobre a mulher de óculos escuros...”
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