*Publicação nesta data em coletiva.net
O casal adotante com Mia, em Girona, Espanha e Mia fazendo festa a Picaso.
O professor e consultor Arno Arnt, indiscutível
cidadão do bem, faz uma previsão inusitada, a de que a maior mãe de todas as
batalhas futuras será entre os proprietários de cachorros x proprietários de
gatos. A justificativa é pela importância que os pets assumiram na vida das
pessoas e para os negócios de uma cadeia produtiva que não para de crescer. Ele, inclusive, já tomou partido: perfila-se
com os felinos, solidário com os
bichanos que tem em casa. De minha
parte, acho que vou ficar isento nessa disputa humananimal, se me permitem a
invencionice linguística.
Nada tenho contra os pets em geral. O que venho observando é
que cães e gatos aprenderam a respeitar os territórios uns dos outros, caso
contrário haveria mordidas e arranhões
pra valer e, por isso, desde que não
sejam incomodados nas suas pachorras, não ligam a mínima se seus proprietários
são potencialmente beligerantes. Conheço
famílias que abrigam as duas espécies, sem problemas.
As constatações são lastreadas também na minha relação respeitosa
e distante com os pets da família, diferente deles que procuram ser próximos e
amistosos comigo. A família é essencialmente
cachorreira, mas já apareceu todo o tipo de bicho residente por aqui, do peixe
101 da Mariana, adotante também do coelho Lênin (quando já revelava pendores
esquerdistas) e de uma tartaruguinha – que conseguiu fugir! –, mais o gato errante
Peter e dois pintinhos recebidos de brindes em uma feira de filhotes em tempos
menos sustentáveis e que viraram aqueles galináceos brancos e acabaram na
panela de uma assistente da casa.
Ah, os cachorros da Osmar
Meletti! Em tempos mais recentes, de um ou outro filho, tivemos a carismática e esperta vira-latas
Penélope, o collie Marley, desajeitadamente imponente, que convivia soberano
com os que reinavam sozinhos na casa, a yorkshire Felícia e seu filho Godo (corruptela de Gordo); o
primo Bento, um nervosinho pincher preto como seu antecessor Chamã, este mais
dengoso, que já foi se encontrar com o Marley e a Penélope no ceuzinho da cachorrada.
Eis que aparece um novo personagem nessa história. Certo
dia, do terreno baldio ao lado da casa começaram a surgir lamuriosos gemidos caninos. As tentativas de
aproximação se mostravam inúteis, ele sempre escapava mato adentro, mas as lamúrias não cessavam. Deu para observar
que era um bicho de bom tamanho, de pelo dourado, meio collie, meio vira-lata e
com uma coleira sem qualquer outra referência. O cão, pelo jeito, se perdera ou
fora abandonado. Estava assustado, carente e, por isso, arisco.
Com oferta de comida e gestos amistosos, a Santa conseguiu,
afinal, amansar e atrair o bicho. Era uma cadela, que foi rebatizada como Mia,
a personagem principal dos livros O Diário da Princesa (papel de Anne Hathaway
no cinema). As tentativas para encontrar os proprietários foram inúteis e
parecia haver uma torcida para que isso não ocorresse, creio que também de
parte da nova hóspede, cuja principesca presença foi tolerada pelos que
continuavam donos do campinho, a Felícia e o Godo. A Mariana, a mais cachorreira da família,
decidiu adotar a Mia temporariamente e levá-la para o seu apartamento, até que
aparecesse alguém interessado em ficar com a cadela em definitivo. Entretanto,
foi amor ao primeiro pernoite e a adotante e o marido Diego não desgrudaram mais da “filha”.
Nem os planos do casal de morar na Europa foram alterados
pela nova parceria, mas exigiu uma série
de trâmites burocráticos e equipamentos para viabilizar a companhia dela
na viagem, primeiro num giro em Portugal e depois rumo à estada na Espanha.
Hoje, Mia é uma cidadã do mundo. Lembro que fui ao
aeroporto na despedida da minha filha e do marido para a Europa e lá estava a cadela com todo o
aparato exigido. Outros três cães, de
raças variadas, viajariam no mesmo voo da TAP. Imaginem a zorra no aeroporto,
mas a Mia se portou com muita dignidade e faceirice, enquanto o resto da
cachorrada dava vexame. Eu diria que ela
tinha consciência da origem monárquica do seu nome e que passaria a conviver
com outras culturas e outras relações nos destinos escolhidos pelos “pais”
dela.
E foi assim que a Mia moldou a vida do casal na estada em Girona, na Catalunha. Toda a
movimentação de ambos ficou condicionada ao bem-estar do outro morador, no
caso, moradora. Só estabelecimentos pet friendly passaram a ser
frequentados. Durante a pandemia, uma das poucas atividades permitidas fora de
casa era um passeio com Mia. Quando nossa
delegação familiar esteve na Espanha, em janeiro deste ano, as netas mataram a
saudade da cadela, à qual tinham se afeiçoado quando ainda era brasileira e ela
retribuiu o carinho da petizada. Foi um reencontro de antigas e sólidas
amizades. Mia sempre gostou muito de crianças e ia ao encontro delas, pronta
para interagir, nos seus passeios nos parques e praças em Porto Alegre.
Agora, ela foi acompanhar a Mariana e o Diego em mais uma
etapa da saga europeia. Estão em Málaga, no Sul da Espanha, muito bem
instalados e onde Mia desfila garbosamente seu charme entre os moradores locais
e os turistas que reapareceram. Nada mal para quem foi encontrada perdida e chorosa num terreno
baldio e que agora, se pudesse falar, diria que é frontalmente contra uma
hipotética batalha entre donos de cães e gatos. Na sua sereníssima postura, Mia
prefere cumprir a nobre missão da sua raça, a de ser o melhor amigo do bicho
homem, tão carente de fraternidade e companheirismo nestes tempos de pandemia.
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