Minha avó paterna, dona Tarsila, também conhecida na
família como Boneca, era fâ de Érico
Veríssimo, vizinho dos Dutra na parte alta da rua Felipe de Oliveira, no
bairro Petrópolis. Ela já tinha lido todos os livros do escritor
até então publicados, na década de 40 do
século passado, e alardeava para a
filharada e a vizinhança:
- O Érico é o homem mais importante de Petrópolis.
O que ela não contava era com a forte oposição da filha mais nova, minha tia Vanda, que tinha oito ou nove anos e
contestava a afirmativa materna:
- O homem mais importante do bairro é o papai, -
dizia a guria, hoje uma lucida senhora octogenária,
a recordar a história num encontro do clã.
- Mas por que tu achas que teu pai é mais importante que o Érico. – insistiu vó Tarsila.
- Porque papai tem curso superior o seu Érico não,
nossa casa é maior que a dele, o papai tem carro oficial na garagem e é amigo do presidente Getúlio
Vargas, - argumentou tia Vanda.
Vicente Dutra, o pai da Vanda e meu avô, era formado
em Medicina, mas já não exercia a profissão; fora prefeito de Iraí, construíra
o balneário de termas que acabou virando cidade e ganhou seu nome no Norte do
estado; o carro preto na garagem era a
mordomia a que tinha direito como diretor regional da Caixa Econômica
Federal, nomeação direta de seu amigo
Getúlio Vargas. E Érico Veríssimo, como
se sabe, era filho de um boticário e ele mesmo um dono de farmácia falido em Cruz Alta, que só
conseguiu a estabilidade financeira como
diretor da Revista do Globo quando se transferiu para Porto Alegre. Ou seja, na visão da pequena vizinha, não
fazia frente ao status e a situação financeira do seu amado pai.
Eis que a polêmica na morada dos Dutra chegou aos ouvidos
de Érico por meio de uma amiga comum. Coube ao próprio escritor dirimir
a dúvida no dia em que bateu à porta dos vizinhos e foi atendido por uma
surpresa Vanda:
- Minha criança, tens toda a razão:
teu paí é o homem mais importante de Petrópolis, - reconheceu o
generoso Érico.
Em seguida presenteou dona Tarsila com um livro
autografado, provavelmente "Olhai os Lírios
do Campo", obra que jamais foi localizada na morada da Felipe de Oliveira - uma construção à antiga, que ainda hoje existe em frente à caixa d´água da pracinha na esquina com a rua
Borges do Canto.( Detalhe: a pracinha recebeu o nome de Mafalda Veríssimo,
companheira de Érico por toda a vida).
O gesto de Érico, mais do que generosidade com uma
criança, pode estar relacionado com as
diferenças entre o seu comportamento reservado, mais as dificuldades
financeiras que a família enfrentou, e as atitudes de seu pai
Sebastião, homem gastador e
mulherengo, conforme relata no
autobiográfico "Solo de Clarineta". Como não prestigiar a menina que, diferente
dele, idolatrava o pai, considerando-o
tão maior que o já consagrado escritor?
Apesar disso, alguns anos após, Érico passou a se
queixar das moças Dutra, que não o cumprimentavam mais. “Essas Dutras estão
muito exibidas”, teria dito o escritor e o reclamo foi levado à dona Tarsila,
que questionou as filhas:
- Nós
estudávamos no Colégio Sevigne e as
freiras nos disseram para ficar longe do
Érico, que teria escrito livros obscenos,- explica hoje, entre risos, a tia
Vanda.
- Aí a mamãe disse que não era para dar atenção às
freiras e que devíamos cumprimentar,
sim, o vizinho nas caminhadas dele pelo bairro, junto com dona Mafalda .- acrescentou.
E assim a cordialidade e a civilidade voltaram a
reinar na Felipe de Oliveira.
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