domingo, 29 de maio de 2016

Marketing dos despossuídos



A grande novidade em termos de marketing de relacionamento pode ser constatada nas principais esquinas da cidade e, por certo, não se originou em cursos de especialização e nem tem um guru de renome a propagandeá-la. A inovação fica por conta da mudança de atitude dos pedintes das sinaleiras ou daqueles que abordam as pessoas nos terminais de ônibus, com cantilenas do tipo ¨eu poderia estar assaltando, matando, mas estou aqui, pedindo uma moeda, uma moedinha que seja... ¨.

Chama a atenção que o apelo é direto, mas com grande carga emocional e aparenta sinceridade, o que torna o atendimento do pedido quase irresistível.  Nas sinaleiras o pessoal tenta também se superar nas abordagens, mas falando menos e comunicando mais por meio dos cartazetes. E quando falam é de forma menos agressiva e sem muita insistência. Afinal, o tempo é exíguo, por isso a estratégia tem que ser eficiente e eficaz para atingir o maior número de motoristas e garantir ganhos de escala. Essa prática depõe contra os manipuladores de malabares e outros praticantes de artes circenses. Quando acabam o número o sinal já está se abrindo e os carros se movimentando, sem deixar o óbolo.

A moda dos cartazes chamativos parece ter sido importada dos EUA, onde os sem teto abusam da criatividade nos seus anúncios em papelão (¨Ajude o viajante do tempo! Preciso de dinheiro para um novo capacitor de fluxo¨, ¨Minha esposa foi sequestrada! Faltam 98 centavos para o resgate¨, são exemplos), ou super sinceros (¨Uma pequena colaboração: para comida, para vinho, para cigarros e para cocaína¨, ¨É sexta-feira e eu só quero uma gelada¨).

Pelo jeito nossos mendigos estão se globalizando, só que são menos intensos, por assim dizer, nas suas mensagens.  ¨Tenho fome, me ajude¨ ou ¨Me ajuda a comprar um lanch qual que ajuda obrigado¨, é por aí e os erros gramaticais são tolerados em nome da solidariedade. Alguns pedintes, entretanto, sofisticam a mensagem como aquele que apela pela contribuição para garantir um futuro melhor ( ¨Sonho em ser bombeiro, mas nunca vou conseguir de estômago vazio¨), ou aquele outro que exibe, diante da negativa dos potenciais colaboradores, uma maquininha de cartão de crédito, conforme relatou Tulio Milman na Zero Hora. O estratagema arranca sorrisos e às vezes reverte a decisão de não doar.


Pra falar a verdade, nem sei se o caso se caracteriza como marketing de relacionamento, mas que funciona, funciona essa estratégia dos despossuídos.






sábado, 21 de maio de 2016

Sobre pontualidade e fuga

Sou um obsessivo por horário.  Chego sempre com antecedência nos eventos, mesmo os familiares, razão pela qual sou criticado pelos de casa que deveriam, contrariamente, louvar minha pontualidade e considerá-la uma qualidade superior. Já ocorreu de chegarmos à casa de um familiar para um festivo almoço dominical e estarem todos dormindo ainda. Era quase meio dia, portanto não estávamos, eu e meus detratores caseiros, muito fora do horário estabelecido para o convescote.

Até tolero uma pequena margem no descumprimento dos horários, mas abomino aqueles que fazem do atraso uma atitude corriqueira, especialmente em solenidades oficiais. Consta que o ex-presidente Lula costumava atrasar-se, às vezes por mais de duas horas para os atos no Planalto. Alguns políticos acreditam que o atraso lhes confere uma importância que carecem ter em seus mandatos. Não é o caso de Lula, me apresso a afirmar, mas tanto o chá de banco que ele eventualmente provocava,  como os de outros agentes públicos menos votados, são reprováveis desrespeitos com os que são obrigados a esperar.

Já convivi com políticos que agem assim e com outros que, como eu, se pautam pelo cumprimento dos horários e cito como exemplo o prefeito José Fortunati que já flagrei chegando mais cedo do que eu em determinadas agendas.

No meu caso, essa obsessão pelo rigor com os horários certamente é herança dos tempos em que atuei em rádio e TV.  Foi naquele período que aprendi uma regra básica: programa que não está pronto no horário corre o risco de não ir ao ar. Outra regra é que o programa deve terminar no horário previsto. Quem trabalha com programação televisiva em rede sabe como funciona o esquema e ái daquele que não entrega para a rede no horário.

Pois a obsessão que desenvolvi a partir da vivência na mídia eletrônica me leva a cometer certos excessos, como chegar com muita antecedência a determinados eventos, devido mais a uma desatenção atávica a depor contra minha formação de repórter que um dia fui e que exigia checagem das informações. Já me mandei para a estrada para participar de um seminário em que deveria palestrar e encontrei fechado o local em cidade relativamente distante de Porto Alegre. O evento estava marcado para o mesmo sábado...na semana seguinte.  Recentemente cheguei 15 minutos atrasado para o lançamento de um livro que ocorreria uma semana depois.  Teria outros exemplos, mas fico por aqui, porque quando cai a ficha do equívoco a sensação é de que a goiabice está tomando conta.


Chegar cedo aos locais me permite, por outro lado, praticar com nível de excelência a manobra de fugar dos eventos chatos ou alongados, tática conhecida como saída à francesa. Funciona assim: circulo com desenvoltura pelos espaços, cumprimento a todos os que devem ser cumprimentados e um pouco mais, aceno aqui e ali e, concluído esse ritual, fico postado próximo à saída. Quando começa a discurseira é a senha para ¨ir à casinha¨ e escapar da chatice. Para quem pretende aderir a essa estratégia, recomendo sair do local simulando atender uma ligação urgente no celular, caso seja flagrado  por algum retardatário.  Garanto que não falha nunca, mesmo para o sujeito desatento como eu. 

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Histórias Curtas do ViaDutra: O impeachment

A ordem foi imperativa e veio da mesa ao lado:

- Ela tem que perder a condição de Homem Honorário.

A determinação partiu da recém promovida Marivalda, depois de um período como Homem Honorário trainee, indignada agora com o comportamento recente de uma veterana titular dessa nobre casta.

As Homens Honorários são um grupo muito especial de mulheres.  Nada a ver com masculinidade ou feminilidade, trata-se tão somente de mulheres que frequentam grupos majoritariamente masculinos e participam com naturalidade de conversas escabrosas, eroticamente falando, e ouvem o que devem e o que não devem. As Homens Honorários são encontráveis especialmente nos ambientes profissionais, onde os naipes femininos e masculinos convivem diariamente, às vezes mais horas do que em suas casas. 

Pois a Marivalda fez valer a sua fidelidade à causa para esbravejar contra a outra, uma moça identificada como ¨aquela muito expansiva¨, que não estaria honrando sua condição de Homem Honorário.

- Onde já seu viu dar um conselho desses à Interposta Pessoa? Pra mim isso é delação premiada e motivo suficiente para um impeachment.

A indignação teria seus motivos: a denunciada encontrara Interposta Pessoa, denominação da parceira não declarada mas bem conhecida de um contumaz pulador de cerca, e aconselhou-a tomar cuidado com o novo emprego do sujeito, pois ele estaria cercado de muitas tentações femininas. A maldosa advertência provocou uma crise no casal semioficial, já que Interposta Pessoa é dada a ciuminhos, embora o parceiro jurasse fidelidade eterna, aliás, de maneira enviesada: ¨Tu sabes que eu sou muito fiel na infidelidade...¨

- Isso é atitude de Lambisgóia, não de Homem Honorário. Fomos eleitas para honrar nossa missão, protegendo nossos confrades masculinos -, sentenciou Marivalda, como se estivesse proferindo voto no Supremo ou junto ao Baixo .Clero da Câmara Federal.

O processo só não teve seguimento porque Maribel, outra Homem Honorário, esta mais sensata, pediu vistas para acamar os ânimos.

Ao ouvir este relato, fiz apenas uma recomendação: não convidem para a mesma mesa a Marivalda, a moça expansiva e Interposta Pessoa. Aí vai ter golpe mesmo!



  

sábado, 23 de abril de 2016

Interposta Pessoa e outras outras

O repertório linguístico dos amantes é amplo e criativo. Acho que até já escrevi sobre isso. Um relacionamento legal impõe uma comunicação diferenciada e, na maioria dos casos, o casal estabelece códigos para se fazer entender e reafirmar seu amor. A primeira providência é batizarem um ao outro com apelidos carinhosos, quando não escorregam para o ridículo. Aí vale tudo e reinam os diminutivos: Fofurinha, Bijuzinho, Morzinho, Neguinha, Tchutchuquinha. Os mais sofisticados preferem expressões em outro idioma: Cherry, Amore Mio, Honny, Darling. É um dengo só e homem vira piegas nessas circunstâncias.

Outro dia, um dedicado companheiro, acostumado às puladas de cerca, revelou o tratamento que dispensa as suas novas parceiras. São as Interpostas Pessoas! Interposta Pessoa tem um significado um tanto de jurisdiques, grosso modo, uma terceira pessoa que se intromete em outra relação. Tudo a ver em se tratando da Outra. Mas a forma como Interposta Pessoa é pronunciada pelo sujeito em questão, beirando a reverência, significa, acima de tudo, uma blindagem. Quem desconfiaria que o termo pode esconder uma pessoa real, capaz de proporcionar grandes emoções e impensáveis prazeres? O companheiro não entra em detalhes, apenas suspira fundo e acrescenta:

- É bem bom!

A propósito, resgato um texto a respeito do tema:

Como ocorre com todos os idiomas, a linguagem da infidelidade também é um processo em constante mutação. O termo amante, por exemplo, caiu em desuso. Ou como diria aquele empresário bem de vida e algo preconceituoso: “Amante é coisa de despossuído. Rico tem namorada”. Preconceitos à parte, a verdade inescapável é que dificilmente você vai ouvir, hoje em dia, alguém dizer que vai ao encontro “da amante”. O termo ficou chulo e brega. Visitar a “outra” ou “aquela outra” até passa. Ouço eventualmente a expressão “pessoa” e sua variação “aquela pessoa” e implico com isso, sei lá porque. Talvez porque existam eufemismos mais apropriados para o caso. Um deles é designar a pessoa em questão pelo realce profissional. Observe o exemplo e constate como fica elegante na frase: “Com licença, mas preciso sair porque tenho um encontro com a Doutora”. Vocês já sacaram quem é a doutora, que pode ser aplicado tanto para profissionais da área médica como do direito. Outro exemplo na mesma linha: “A professora me espera”. No caso, pode ser realmente uma mestra do saber ou uma homenagem do homem aos conhecimentos da parceira, por assim dizer, em outra matéria.

A tribo dos infiéis é criativa e inventa toda a sorte de artimanhas para escapar de questionamentos incômodos. Conhecido repórter, por exemplo, só escreve os telefone de suas novas conquistas em linhas verticais. Para todos os efeitos é uma operação de somar, se a anotação cair em mãos indevidas. Um sistema simples e eficaz.

Os códigos mereceriam um capítulo à parte. S. operador da bolsa de valores, certamente influenciado pela sua atividade, só marcava encontros com a companheira por meio de mensagens codificadas, enviadas por telefone ou por e-mail. “Cotação: MA-1830”. Tradução: Encontro às 18h30 no Motel A. Ou: “Índice Bovespa: RB-2100+MC”. Tradução: jantar no restaurante B às 9 da noite e depois esticada ao motel C. A cada letra correspondia um motel ou restaurante já conhecidos, então ficava fácil decodificar a mensagem. A resposta da parceira vinha na mesma linha. Se estava disponível avisava: “É hora de comprar”. Caso contrário, informava: “Venda as ações”. O único receio deles é que viesse a mensagem, previamente combinada, significando que tinham sido descobertos: “Crack da Bolsa!”

J, desportista, também utilizava linguagem apropriada a sua área de atuação. A mensagem “Hoje, 100 metros rasos”, significava disposição para uma rapidinha. Já “Amanhã Maratona” era a forma de dizer que estava preparado para uma grande noitada. As respostas às vezes eram desestimulantes, tipo “100 metros com barreiras”, quando a parceira dava conta de que ele podia pedir o que quisesse, mas não levaria tudo. O policial M. cifrava suas mensagens à namorada igualmente com as expressões que estava acostumado a usar no dia a dia. Exemplo: “Hoje acareação, 19, local do crime”. Tradução: encontro às 7 da noite no mesmo motel de sempre. Quando não podia comparecer aos encontros, avisava: “Elemento fugou” era a senha.


Acreditem: esses exemplos são reais e mais frequentes do que imagina nossa vã filosofia.

domingo, 10 de abril de 2016

Era bom!

* Publicado originalmente em 17.08.2011, mas atual como nunca

Estou empenhado em reunir um bom número de pessoas, preferencialmente homens, em torno de uma confraria que será denominada de “Era bom!”. Não haverá qualquer preconceito quanto à idade dos participantes, mas acredito que o mote que vai nos reunir não será atraente para os mais jovens.

A proposta é ensejar o encontro de pessoas que tem em comum o fato de terem abdicado de um dos melhores prazeres que a vida pode nos proporcionar e para isso é preciso ser firme nas decisões, o que requer maturidade. É coisa para sessentões ou mais. O peso dos anos exige cuidados extremos no enfrentamento de certos desafios. A resposta do nosso corpo não é a mesma de anos atrás quando traçávamos o que vinha pela frente. Nem a evolução da medicina, com suas panaceias, consegue minimizar os efeitos danosos de uma extravagância, a demandar esforços que os nossos órgãos não podem suportar.

Temos que ter consciência dos nossos limites, fugir às tentações. Por isso, ao criar a “Confraria do Era Bom” já vamos lançar o nosso slogan: gordura, nunca mais! Vocês pensaram que era sobre aquilo, né?!

Adesões em aberto no Via Dutra.

domingo, 3 de abril de 2016

Memórias póstumas

Da mesa ao lado, Marivalda dispara:

- Vô, nunca pensou em escrever tuas memórias?

A bem da verdade a pergunta não me pegou de surpresa. Desde que o ViaDutra foi ao ar, seis anos atrás, só o que tenho feito é resgatar vivencias, mais boas do que ruins, mais divertidas do que frustrantes, mais emocionais do que racionais. Mas muita coisa ainda pode ser contada e certamente é isso que move a indagadora Marivalda.

- Eu falo daquelas situações escabrosas em que tu estivestes  envolvido -, provoca ela.

Sou obrigado, então, a fazer uma revelação que pretendia tornar pública bem mais tarde. Premido pelas circunstâncias, uma vez que todas as mesas ao lado ficam em suspense a espera de uma declaração definitiva, abro o jogo:

- Já conclui minhas memórias, mas como tem muita gente envolvida e vou contar tudo, apontar nomes e situações, só autorizei a publicação cinco anos após meu passamento.

Preferi usar a expressão meu passamento porque achei mais adequada do que falar em morte, mas isso não impactou o ambiente e, sim, o fato de que revelações estarrecedoras prometidas pelas memórias póstumas poderão tardar muito tempo. É que, se depender das condições de saúde, meu passamento vai demorar.

- Pô, adianta alguma coisinha pra nós -, apela um

- Isso é crime de lesa informação, sonegar fatos importantes –, alega o outro jornalista presente.

- Pelo jeito tem gente muito importante envolvida. Homens e mulheres? -, tenta a moça curiosa.

- Como está a tua saúde? -, pergunta um provocador.

Mas não adianta a pressão. Mantenho-me em silencio obsequioso, só quebrado por uma informação que julgo importante antecipar.

- O material já está pronto e entregue a um jornalista para a revisão final. Só que ele não é muito confiável e temo que ocorra algum vazamento seletivo.

Foi como se tivesse ocorrido uma operação da PF, com o japonês à frente, tal o alvoroço provocado pela simples probabilidade de um vazamento de informações.  Houve quem afirmasse que grandes estripulias eróticas  viriam a tona, outros apostaram em malfeitos contra o erário público, ou, ainda, em delações inconvenientes. Enfim, não ouvi nenhuma versão mais edificante, o que não me surpreendeu nestes tempos de incertezas e moral em baixa, em que os valores perderam espaço para o vale-tudo.

De imediato, tratei de escapar do recinto, antes que a situação saísse definitivamente de controle. Acho que passei a correr riscos. Vou reforçar minha segurança pessoal, ou pedir asilo em alguma embaixada de país bolivariano. 

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Dastro Dutra, a rua

O texto a seguir é um trecho do prefácio de Justino Vasconcellos, ex-presidente da OAB RS e cunhado de nosso pai, para o livro “90 anos de histórias”, que a família Dutra editou em 2005 por ocasião dos 90 anos do coronel Dastro  Dutra - na verdade, era tenente-coronel da Brigada, mas nunca recusou a patente superior e por ela ficou conhecido, Ele veio a falecer poucos meses depois de celebrarmos seus 95 anos.  Só a doença e o peso da idade conseguiram vergar o Coronel, que cumpriu plenamente sua missão entre nós, legando principalmente valores e um exemplo de vida. E agora é homenageado com o nome de uma rua no bairro Restinga, o que deve ter deixado ele muito feliz, onde quer que esteja, lembrando uma vida dedicada aos mais necessitados, desde os tempos dos Vicentinos na Igreja de São Sebastião, em Petrópolis.



DE PÈ

1932. Estava prestes a iniciar a batalha de Itararé. Ninguém ignorava que ela seria decisiva. Cresciam o vozerio e a barulheira das armas, em expectativa, no acampamento das tropas avançadas do Rio Grande, contra a Revolução Paulista, que reclamava a imediata constitucionalização do País, indefinidamente protelada por Getúlio.

De repente, o silencio: irrompia no horizonte um avião, arma desconhecida pelos gaúchos. Às ordens de comando, todos atiram-se ao chão. Todos, menos um cadete de 16 anos.

De pé, advertido sobre o perigo, Dastro respondeu:

- Pois que venha esse aviãozinho! Eu é que não vou sujar minha farda por causa dele.

E continuou de pé.

E de pé, se manteve a vida inteira.

Na Academia de Polícia Militar. E no serviço ativo, em Livramento, em Rio Grande, em Santa Maria e Porto Alegre. Contra todas as ameaças e adversidades ele permaneceu, invariavelmente de pé. Tal como aos 16 anos, na iminência da batalha. De pé sempre, para o que desse e viesse.

Naquele tempo, era generalizada – dogmaticamente generalizada – a convicção de que o sacerdote, o juiz e o soldado devem contar apenas com o estritamente indispensável para sobrevivência espartana.

E Dastro enfrentou, de pé, as agruras da severa pobreza que a Brigada Militar oferecia a seus oficiais e soldados. Ele e Thélia, também admirável, com seus nove filhos.

Chamado ao cargo de Diretor do Departamento de Limpeza Pública de Porto Alegre – hoje DMLU -, Dastro logo se impôs ao respeito e admiração gerais. Respeito pela eficiência que imprimiu ao serviço. Admiração pelas iniciativas inesperadas, com que soube conquistar a cooperação entusiástica dos subordinados.

Assim, organizou uma padaria, cujos produtos eram entregues a preço de custo, aos funcionários do DLP. E uma farmácia, cujos medicamentos eram fornecidos a preço de custo. E um refeitório, com as refeições servidas, também elas, a preço de custo, aproveitando-se os legumes e hortaliças cultivadas na área do DLP.

Ele fez do seu Departamento uma grande família, com tais iniciativas, implantadas sem qualquer acréscimo de despesa, pois o pão, o medicamento e as refeições, tudo, tinham o preço rigorosamente apurado, sem deixar lucro e nem prejuízo. Era natural, pois, que os servidores trabalhassem, em sistema de rodízio, sem qualquer remuneração, pelos serviços prestados nessas organizações, em vista dos benefícios obtidos.

Até com máquinas de lavar roupa Dastro conseguiu presentear as mulheres dos seus funcionários, máquinas de madeira, construídas conforme plantas que obteve da Organização dos Estados Americanos.

Para muitos, está claro que a atividade desse brigadiano, Diretor do Departamento de Limpeza Pública, era desconfortável, demasiadamente incômoda: quais seriam as verdadeiras intenções dele? Onde pretendia chegar?

E, inesperadamente, Dastro foi substituído, para espanto e desconsolo de quantos tinham trabalhado sob suas ordens.

Mas é claro que ele continuou de pé. E foi chamado para a direção do Presídio Central, onde se repetiram os êxitos alcançados no DLP, até ser demitido pelas manhas e artimanhas dos muitos ofendidos com o trabalho incansável e os sucessos de Dastro.

Basta lembrar que, ao saberem da substituição de Dastro, os presos, no mesmo instante, se rebelaram exigindo o imediato retorno dele ao cargo! Não, não se sabe de ninguém, nem mesmo por ouvir dizer, não se sabe de um só diretor de presídio no mundo inteiro, cujos detentos tenham se amotinado, para mantê-lo no cargo.

Mais admirável ainda é que o motim só tenha terminado mediante a intervenção de Dastro, junto aos presos, a pedido do próprio Governador do Estado e do Cardeal Vicente Scherer.

Sim, Dastro manteve-se de pé, fossem quais fossem as ameaças e circunstâncias. 90 anos de pé.

Nunca sujou a farda.

Nunca sujou o coração.

Nunca sujou a alma.

Homem de fé, exemplar daquela velha raça, desgraçadamente em extinção, a dos cavaleiros sem medo e sem mancha - “sans peur e sans reproche” -, honra e glória da humanidade.


domingo, 27 de março de 2016

Mui leal e valerosa


O brasão da Capital gaúcha ostenta em destaque os dizeres leal e valerosa cidade de Porto Alegre que muita gente associa à adesão à causa Farroupilha na revolta contra o Império.   Ledo engano. Porto Alegre ganhou esse título justamente pelo seu apoio aos imperiais. A cidade foi invadida em 20 de setembro de 1835 a partir da ponte da Azenha sobre o Arroio Diluvio, onde se deu o primeiro combate entre os cerca de 100 rebeldes contra as forças imperiais que defendiam Porto Alegre.

Sem apoio da população e sem condições de expandir a guerra a partir da Capital, os farrapos tiveram que abandonar a cidade em junho de 1836. Depois da retomada pelos legalistas, Porto Alegre enfrentou mais três sítios, mas a mui leal e valerosa resistiu ao assédio rebelde merecendo por isso o título concedido pelo Imperador.

Viria daí, dessa resistência à rebeldia, tudo às avessas, uma forma de irredentismo de Porto Alegre, impregnada na sua gente e aculturada com o passar do tempo. Uma esquizofrenia de quem ama sua cidade de forma envergonhada, antes é preciso desqualificá-la, potencializar seus defeitos e minimizar suas virtudes, mas ai do estrangeiro que ousar falar mal dela. É um cotidiano feito de rabugices por grandes e pequenas causas, de negações ao novo, de contrariedades ao diferente, embora o porto-alegrense se ache culturalmente evoluído, politicamente esclarecido e receptivo à diversidade, seja ela qual for.

No entanto, parece que o povo age contraditoriamente assim para purgar – ou confirmar? -  uma culpa atávica pelo oficialismo e oposição diante do movimento farroupilha. Não há orgulho em ser mui leal e valerosa. A tese é do meu amigo, o jornalista e escritor, Gustavo Machado e sou tentado a concordar com ela.

Mas Porto Alegre que já foi a Cidade Sorriso hoje procura uma nova identidade, diferente daquela que lhe impôs o PT em 16 anos de gestão, com apelos ao popular e ao participativo que só se efetivavam nas instâncias e mecanismos devidamente aparelhados.  Esse modelo chegou a encantar por um tempo, mas se esgotou como todas as propostas que mais dividem do que buscam o bem comum.

A cidade tem muitos atributos, mas nada que se sobressaia e não me venham com o por do sol ou o Laçador porque não é isso que faz a identidade de uma metrópole. É algo imaterial, maior do que a bela manifestação da natureza ou o portentoso monumento. Houve um tempo em que se tentou o conceito Multicidade, mas não pegou.  A questão, portanto, está em aberto.

Está na hora de deixarmos de ser a Cidade do Mas, a Pequenópolis de alguns, a Caranguejópolis de outros, a Rabugentópolis de todos nós, e voltarmos a ser, quem sabe, a Cidade Sorriso como preconizou Nilo Ruschel,  quando assim a batizou nos seus programas radiofônicos nos idos do século passado.  E voltar a ser não seria retrocesso, mas avanço.
A verdade é que a minha Porto Alegre precisa se redescobrir.

sábado, 26 de março de 2016

Operação Salchipão

Nestes tempos de operações quase diárias da PF e de delações aperreadas, todo o cuidado é pouco.  Quem é do ramo da construção civil ou que tem alguma afinidade com os malfeitos que o juiz Moro e sua equipe investigam sabe bem disso e, por consequência, como se comportar sem ostentação.

O temor chegou a tal ponto que conhecido empresário ficou em pânico ao observar um helicóptero se aproximando da sua casa na praia, num condomínio classe A  do litoral gaúcho. Ele preparava na churrasqueira do pátio um assado com as melhores carnes disponíveis no mercado e aquele helicóptero cada vez mais perto, atucanando o pobre homem.

- É o Japonês chegando -, pensou com seus espetos.

Imediatamente gritou para a mulher:

- Amor, traz logo aquelas costelas que vou trocar pelos grelhados para não dar na vista, mas traz logo e os pãezinhos e os salsichões também, pelo amor de Deus.  Vou fazer um churrasco de pobre.

Não fiquei sabendo se o churrasqueiro conseguiu iludir os ocupantes do aparelho com a troca dos cortes de carne, afetando um despossuimento  que não condizia com a realidade, até porque o helicóptero devia estar a serviço de outra missão, menos investigativa.

Quem me relatou o episódio jura que foi assim mesmo que aconteceu e que o envolvido não guardava qualquer relação com a Lava Jato.  Foi aí que pensei cá comigo: quem não deve não teme.  E fiquei imaginando um nome para a operação da PF, se fosse o caso, algo como Grelha Quente ou Espetada Litorânea, mas poderia ser também Operação Salchipão.


sábado, 19 de março de 2016

Miniconto nada ideológico *

A moça coxinha e o rapaz petralha só  convergiam na cama. Aí as manifestações eram intensas e sem protestos.

* Inspirado em fatos reais.