quinta-feira, 23 de junho de 2011

Encontro marcado

O livro de lombada vermelha se sobressai na prateleira empoeirada. “Encontro Marcado”, de Fernando Sabino, foi uma das primeiras leituras da adolescência, que agora retorna nesse mergulho nostálgico na velha morada destinada a virar escombros. È um encontro marcado que reúne parte do clã para dividir o espólio da casa, alguns móveis em bom estado, quadros de relativo valor, mas não há disputa, porque o mais valioso está disperso entre a papelada e cada um sabe o que lhe cabe.


Um recorte de suas vidas, zelosamente preservado pelo patriarca, está registrado em fotos, documentos, lembranças diversas dos tempos em que o casarão abrigava toda a filharada e a geração seguinte, e atraia os agregados que cada um trazia e que não eram poucos. E havia ainda espaço para um clube de paraquedismo, a sede de um time de futebol, os estúdios de uma rádio clandestina, a redação do jornalzinho mimeografado , as confrarias que iam se formando de tempos em tempos e até um improvisado cassino de carteado nas tardes de sábado.

O galpão dos fartos almoços dominicais da matriarca e de memoráveis churrascadas é o cenário do descarte do que não vai ser preservado. È uma tarefa difícil porque o que sobreviveu por tantos anos algum valor teria no futuro. Mas como saber o que se passava na cabeça do patriarca quando selecionou aqueles itens para que agora eles tivessem dúvidas? Como explicar, por exemplo, as duas gavetas cheias de moedas e cédulas de todos os valores, verdadeiro acervo do histórico monetário do país? Em algum período aquele dinheiro teve valor, mas hoje, como a maioria dos papéis distribuídos sobre as mesas, o valor que permanece é o que cada um lhe confere pelas lembranças que evoca.

E as lembranças são tantas que se permitem um momento para rememorar causos passados, como o barraco entre cunhados por causa de um gato, ou da menina que mordia as primas e os cachorros, ou, ainda, do menino de sorriso maroto que se foi tão cedo. Houve outras perdas ao longo do tempo, mas não há lamentações e quase se repete o clima festivo do passado, que os reunia pelas afinidades herdadas. Agora, como acontecia antes, os ausentes são difamados.

No pomar, a velha parreira que era a extensão natural das reuniões no galpão, agora é estéril. Mas a bergamoteira dá frutos abundantes, a mangueira e a goiabeira também ficam carregadas, cada uma a seu tempo. A analogia logo vem: a parreira é o que passou, mas há uma renovação e frutos vigorosos para o que foi plantado com boa semente e criou raízes fortes. È um encontro de comunhão e celebração da vida que segue.

domingo, 19 de junho de 2011

Tréplica

Tardou, mas não falhou: a Jandira Feijó se apresentou com a tréplica no debate originado pelo texto "Casamentos em risco", publicado aqui no ViaDutra. Confira aí:

Caríssimo Flávio


Teus textos, impecáveis, traduzem com fidelidade esta vocação para enticar – uma palavra que, aliás, remonta a minha infância e me obriga a ver que os anos passaram, mas, felizmente, nem tu, nem eu, perdemos a alma moleque. E já que o tema é a estabilidade dos casamentos, não existe a possibilidade de evitarmos a polêmica. Senão, vejamos.

Garotos adoram implicâncias. Desde cedo vocês se especializam nisto, assim é natural que este comportamento, ao longo do tempo, ganhe novos contornos e se expresse no casamento sob a forma refinada da acomodação e do bullying conjugal.


Quem, a não ser vocês, os meninos, conseguiriam enticar com tal maestria a ponto de transformar as meninas em senhoras rabujentas?

Para ficar no basiquinho, “fazer xixi sem levantar a tampa do vaso, ficar inconveniente depois da segunda cerveja, preferir assistir na TV aos jogos da segundona ao invés do palpitante capítulo da novela, falar mal da sogra e dos cunhados” e se gabar que cozinham melhor e com maior prazer do que as mulheres são meras manifestações da inclinação atávica masculina para enticar.

É óbvio que os homens passam por uma profunda crise de identidade. Já não sabem qual o seu papel na sociedade moderna. E como acreditam que a natureza os definiu como os mais capazes provedores, executores de tarefas nobres (como definir o destino da humanidade), “trazer também palitos e guardanapos” e abrir vidros de conserva, admitam, passa a dar sentido a sua existência.

Ah, mas enticar é preciso! E, como garotos precisam demonstrar que são “os caras”, vocês descobriram um jeito de diabolizar suas dedicadas esposas: vocês enticam e elas rabujam. Quer crueldade maior do que esta? É bullying conjugal, meu caro amigo.

Por fim, um pequeno comentário sobre a conta conjunta. Boas alunas, as mulheres compreenderam logo que a conta conjunta é de fato um problema, por isto, nos casamentos modernos, elas não cometem o erro de compartilhar suas contas com os maridos – uma espécie de vingança contra aqueles extratos mal explicados por esposos de outrora!

Prá encerrar, um “versinho” numa demonstração de que não guardamos mágoas:

“o homem é um diabo,
não há mulher que o negue,
mas todas elas querem
que o diabo as carregue”

Abraços, Jandira

domingo, 12 de junho de 2011

Vantagens da terceira idade

Nem tudo é limitação na chamada terceira idade. Aos 6.1, motor original queimando só um pouquinho de óleo, começo a gostar das benesses que as políticas públicas reservam para os que chegam a essa quadra da vida. Por exemplo, pelo segundo ano consecutivo recebo minha restituição do Imposto de Renda já no primeiro lote. Não é grande coisa, mas já ajuda para pagar as contas e fazer um ranchinho. Preferia que o Leão me isentasse de descontar o IR, mas enfim, não dá para querer tudo na vida.


Outra vantagem são as vagas para idosos nos estacionamentos. Confesso que de início eu ficava cheio de dedos ao estacionar nos espaços reservados nos supermercados e shoppings, mas a comodidade acabou vencendo o constrangimento. Como as vagas são de bom tamanho, isso evita o xingamento que ouvi, tempos atrás, ao tirar um fininho do carro de um garotão.

- Cuidado aí, velho barbeiro!

Velho tudo bem, mas barbeiro não admito. Como sou de paz e o jovem era do tipo fortinho, deixei a provocação pra lá. Mas magoei.

Em compensação, meu ego foi massageado quando me submeti a vacina “de grátis” contra a gripe num dos postos de saúde da prefeitura.

A gentil atendente perguntou minha idade e quando declinei os 6.1 ela foi categórica e acho que sincera:

- Não parece, eu daria bem menos idade ao senhor.

Tirante o “senhor”, fiquei bem faceiro com a avaliação da moça e vou pleitear uma promoção para ela junto ao secretário Casartelli.

Mas nem tudo são flores nessa jornada que insistem em chamar de melhor idade. Outro dia fiz uma pesquisa com meus iguais, perguntando quantos remédios tomavam, além daquele comprimido azul: três foi a média e todos começaram a exaltar as qualidades das suas panacéias – uma chatice, coisa de velho. Terceira idade é isso: a alegria dos laboratórios. Pior são os veteranos que decidem freqüentar as academias de ginástica. Além dos comentários maliciosos sobre as moças das esteiras com seus abrigos colantes, vivem a se queixar de dores aqui e ali, mas não se entregam: “Estou me sentindo outro homem, depois que comecei a puxar ferros”, garantem, numa linguagem mais adequada a outras faixas etárias.

Enganação maior só mesmo as filas de bancos para os caixas especais: andam tão morosamente como as dos pobres mortais. O curioso é que antes dos 60 recebia invariavelmente a senha para os caixas especiais, ficava p. da cara, mas não devolvia e agora tenho sido selecionado para os outros guichês. Será que estou rejuvenescendo?

E tem ainda a meia passagem no transporte coletivo e o meio ingresso no cinema, benefícios que ainda não aproveitei. O que tenho utilizado com freqüência é a prerrogativa de falar as maiores sandices, anunciar grandes besteiras, discorrer sobre teses absurdas, apresentar soluções inviáveis, tudo isso sem ser contestado. Essa “autoridade” decorre da combinação da idade com os cabelos brancos, que garante uma aura de credibilidade às bobagens apregoadas. Mas não me invejem. Trocaria tudo por alguns desatinos que deixei de cometer e pela repetição de outros, muito prazeirosos,  na fase em que ainda não era tratado de senhor.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Não me provoca, Jandira

Minha caríssima amiga Jandira Feijó me desafiou a escrever sobre “o novo paradigma do marido moderno, que precisa passar sua própria roupa e cozinhar muito bem, porque só ir ao supermercado não segura casamento”. Copiei literalmente para não dar margens a outras interpretações. A boa Jandira, além de competente jornalista e uma entusiasta das redes sociais, é uma provocadora nata. Igual a outra querida amiga, a Mirian Bravo, que de brava não tem nada, mas defende com bravura seus argumentos, com o pedido antecipado de perdão pelos trocadilhos forçados com o nobre sobrenome.

Estaria eu, com essa conversa mole, fugindo ao desafio proposto pela Jandira e reforçado por uma mensagem da Mirian, a propósito do texto “Casamentos em risco” ? Pode ser, mas é preciso levar em conta que as duas tem lá suas razões quando o assunto são os papéis do homem e da mulher na vida a dois na sociedade moderna. E preciso encontrar argumentos civilizados, sem abdicar das minhas teses e sem criar novas polêmicas.


Na verdade, no texto anterior alertei para dois fatores que podem, sob a ótica masculina, colocar em risco até mesmo o mais estável dos casamentos: a conta bancária conjunta e os pedidos das mulheres a seus maridos quando estes estão retornando ao lar. Não pretendia inticar com ninguém, muito menos com as senhoras, apenas fazia um alerta, repito. E mais: esperava que do outro lado viesse uma lista interminável de itens e situações que desagradam às mulheres nos procedimentos dos homens enquanto maridos. Coisas como fazer xixi sem levantar a tampa do vaso, ficar inconveniente depois da segunda cerveja, preferir assistir na TV aos jogos da segundona ao invés do palpitante capítulo da novela, falar mal da sogra e dos cunhados, isso pra ficar no basiquinho. Mas minhas expectativas foram frustradas. Pelo jeito as gurias não querem polemizar.

Em relação ao “novo paradigma do marido moderno”, sugerido pela Jandira, devo reconhecer que, de fato, os homens estão assumindo cada vez mais atividades que antes eram exclusividade de suas mulheres. A diferença é que os homens assumem o novo papel com alegria e espontaneidade, diferente das mulheres que se queixam do fardo da lida doméstica. Diria mais : ao colocar a mão na massa os homens transformam o corriqueiro em arte e o melhor exemplo é a gastronomia. Não é por outra razão que os grandes chefs são homens. Assim, não nos assusta dividir as tarefas do dia a dia, o que fazemos prazerosamente. Acho mesmo que só perderemos o prazo de validade quando as mulheres conseguirem abrir os vidros de conserva...

*Em homenagem à provocadora Jandira e às palpiteiras Mirian, Bibiana, Laura, Maura e Fernanda, musas do Facebook. 

Casamentos em risco



Mais do que a eventual infidelidade de um dos cônjuges, mais do que encostar o pé frio embaixo das cobertas, mais do que a tolha molhada sobre a cama ou as calcinhas penduradas no banheiro, o que pode detonar uma crise irreversível no casamento são dois fatores, claro que do ponto de vista, de viés machista, deste autor. Anotem, pela ordem de importância: a conta bancária conjunta e os pedidos prosaicos das senhoras aos seus maridos justo no momento em que o guerreiro está concluindo sua penosa lida diária e se recolhendo ao lar.

Não é preciso muita argumentação para sustentar os perigos de uma conta conjunta, nem tanto pela fúria consumista das parceiras, mas pelo controle que ela passa a ter sobre movimentação financeira do maridão, a oficial e a paralela. Como justificar aquele agrado, em forma de jóia, destinado sabe se lá a quem, ou melhor, sabe-se bem a quem, enquanto a madame tem que se contentar com bijuterias baratas e imitações chumbregas. E como explicar aquela grana preta gasta na casa daquela Tia famosa, na noite em que deveria estar reunido com a confraria dos amigos de fé?

Por mais irracional que possa parecer, o infrator recorre ao cartão de crédito conjunto para debitar as despesas de seu lado B. Ingenuidade, excesso de confiança ou desejo inconsciente de ser desmascarado para compensar o sentimento de culpa ? O que leva um cidadão, no pleno uso de suas faculdades mentais, a cometer tamanha babaquice? É difícil saber, mas uma coisa é certa: vai dar rolo e o casamento corre risco.

Falamos do lado perigoso. Tratemos agora do lado irritante que pode balançar um casamento. Irritante para o batalhador do cotidiano é, ao fechar o computador, receber o telefonema da patroa:

- Mor, já tá saindo? Então traz pão, leite e frios. Não esquece, viu mor.

A empatia toma conta de mim e eu me coloco no lugar desses pobres homens, obrigados a executar tarefas pouco nobres, depois de terem decidido o destino de pessoas e instituições. Na real, não saberia dizer o que irrita mais, se a forma reduzida de” Amor” ou o “não esquece,viu”. Solidário com o naipe masculino, considero as duas coisas uma forma de tratamento vil e perversa.

Nas minhas andanças já assisti a companheiros, homens de forte personalidade, se curvarem indignamente diante dos pedidos banais de suas patroas. Um deles, consagrado comunicador, atendia docemente o telefonema, anotava os pedidos e depois se transtornava porque fraquejara na hora em que precisava se impor.

- ...e não esquece de trazer também palitos e guardanapos, determinava a senhora do outro lado da linha.

Era demais, realmente, e o sujeito, aniquilado moralmente, bufava pela incapacidade de reação. Vamos combinar/aceitar que a nós está reservado, entre outros papéis, o de provedor, legado que recebemos desde os tempos das cavernas quando nossos ancestrais saiam à caça para garantir a sobrevivência de cada dia. Os tempos mudaram mas abater um leão por dia para garantir o sustento da família continua sendo nossa principal missão. Vai daí que aprovisionar a família com itens de consumo diário passou a ser obrigação do guerreiro na volta ao lar. Pão, leite e frios ainda vai, mas palitos e guardanapos é uma demasia, uma afronta. Insurgência masculina, já!

Bem, agora me dêem licença, porque recebi um telefonema da Santa e vou precisar passar no supermercado...


*Obrigado, Giuli

domingo, 5 de junho de 2011

Melhores Frases

Na falta de inspiração para encontrar um mote e produzir um texto inédito, apelo – sem constrangimento – para uma seleção do twitter @melhoresfrases, com os devidos créditos:


Pra mim, beijo é cultura. Eu beijo para conhecer novas línguas. @osvaldobian


As mulheres são mais irritáveis porque os homens são mais irritantes. @millorfernandes


O amor não é aquilo que não tem tamanho. O nome disso é anão. Amor é outra coisa. @naoeamor


Fique Adão, vai ter costela. @Alexandremedina


Fica Chapeuzinho Vermelho: vai ter lobo.@AlexandreMedina


Quando Jesus, após a ressurreição, subia aos céus, os apóstolos disserem: Fica, vai ter bolo. @OCriador


No twitter não seja bravo, seja breve. @cacarosset


Hoje quando fui procurar no Google fotos da Cláudia Ohana vi cada coisa cabeluda. @samara7days


Quando os gays descobrirem quão chato é um casamento irão protestar pelo fim dessa lei. @osprimitivos


Casamento é igual a produto chinês. De fora, até parece que funciona.@tiodino


O Censo precisou fazer uma pesquisa para comprovar o que toda a mulher já sabe: tá faltando homem. @Deercy


Invejo burrice, porque é eterna.@rodriguesnelson


Ando tão carente que paguei uma garota de programa só para me abraçar. @osprimitivos


O cúmulo da mentira é fingir orgasmo na masturbação. @humor_feminino


Toda a vez que tento ler kkkk eu paro de rir. @Assum_P


Esteira: aparelho que leva nada a lugar nenhum e ainda demora 40 minutos para chegar. @AbelLumer

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Otimistas e esperançosos

Sinto uma santa inveja daqueles que, cheios de amor para dar, postam mensagens positivas nas redes sociais, desejando “bom dia”, “boa semana” e outras manifestações do gênero. Um parceiro, pessoa meiga e com o coraçãozinho transbordante de entusiasmo, agrega uma cor a cada dia, na sua saudação matinal. Deve fazer muito bem a ele e aos receptivos à mensagem.


Não desqualifico, nem recrimino os otimistas de plantão. Só os invejo, repito. Gostaria de ter recebido o dom de enxergar o cotidiano e seus problemas com os olhos da esperança, aquela esperança de que, ao fim e ao cabo, tudo se resolve; aquela esperança que nasce da certeza de que o mundo não vai acabar se os nós não forem desatados; aquela esperança que se renova porque existe um dia seguinte.

Essa esperança, porém, não deve ser diferente da que conflita com a vida real, na qual, ao fim e ao cabo, nem tudo se resolve, o mundo não acaba mas o nosso universo particular pode desabar e o dia seguinte pode ser um acumulado de problemas não resolvidos. Ainda assim, invejo o astral dos otimistas e dos esperançosos. Só gostaria que junto com as mensagens positivas indicassem também a fórmula para agüentar os chatos e os interesseiros, para dizer “não” sem magoar, ser duro sem perder a ternura, conciliar necessidades com disponibilidades, enfim, desentortar pepinos, descascar abacaxis e abater um leão por dia de forma que haja um mínimo de gratificação pessoal.

Bem sei que a fórmula não existe ou se existe está dentro de cada um. Se estiver dentro de mim deve ter se refugiado num recôndito que minha sensibilidade não consegue alcançar. Mas não esmoreçam, otimistas e esperançosos. Continuem mandando suas mensagens. Pode ser que daqui a pouco os deuses do otimismo olhem para esse pobre e frágil mortal e me transformem num guerreiro da esperança.

sábado, 21 de maio de 2011

Macho Man

A diminuição do preconceito contra os gays de todos os matizes deve muito às novelas da TV. Não há um dramalhão sequer que não tenha sua porção gay e o detalhe é que todos pertencem à banda boa da trama, são leais e felizes, diferente do machão típico, ao qual é destinado sempre o papel de mau caráter. Pode ser uma leitura simplista dos roteiros televisivos, mas a verdade é que esses papéis não são designados ao acaso. Na origem e na condução da história está o autor e não é segredo para ninguém que boa parte dos nossos novelistas são gays, daí que não pegaria bem desqualificar os seus iguais com papéis menos nobres.


Semana passada, por exemplo, o SBT exibiu o primeiro beijo entre mulheres em novelas, que foi saudado como um avanço nesse processo. No caso, a ficção esta bem atrasada em relação à realidade, basta circular pela Cidade Baixa...

O que se observa agora é um sutil movimento para transformar os gays das novelas em personagens menos caricatos, sem tantos trejeitos. Começam a aparecer homossexuais que enganam como heteros, mas que assumem que estão fora do armário há tempos. Isso quanto ao, digamos, naipe masculino. Quanto às lésbicas, que passavam ao largo da caricatura, parece estar ocorrendo um movimento inverso, com o aparecimento de personagens mais masculinizadas. Talvez seja só impressão minha, sei lá. Também pode ser só impressão minha mas tenho visto muitas cenas de brigas entre mulheres nas novelas – é um tal de puxa cabelo, unhada pra cá e prá lá e agarrões como se fossem moleques de rua. Não sei aonde querem chegar os nossos novelistas trazendo as mulheres para um patamar menos civilizado.

Isso me incomoda, ao contrário da exposição maior das chamadas relações homoafetivas, pois convivo bem com a diversidade. Só não peçam para me desculpar por ser hetero. É importante ser claro nessa hora, incompreensões e radicalismos - de todas as partes - fora.

Um exemplo de como tratar o tema com leveza, bom humor e sem preconceito é a série Macho Man, que a Globo exibe às sextas-feiras. Na modesta opinião do ViaDutra , Macho Man é – disparada – a melhor série da nova safra da Globo. Os textos são do casal Fernanda Young e Alexandre Machado, o mesmo de Os Normais, e a história gira em torno do cabeleireiro Zuzu ( Nelson na vida  "real”), que leva uma pancada na cabeça, deixa de ser gay e passa a gostar do sexo oposto. Na nova “ fase”, Zuzu, numa magistral interpretação do ator e diretor Jorge Fernando, compartilha suas angustias e dúvidas com Valéria, sua assistente no salão de cabeleireiros, papel que Marisa Orth desempenha em grande estilo, fazendo o gênero ex-gorda que não consegue despertar a atenção dos homens. Todo o elenco, formado por coadjuvantes não muito conhecidos, tem uma performance de primeira, mas as rápidas transposições de Jorge Fernando durante os diálogos – de gay para hétero e vice versa – fazem os melhores momentos da série.

A questão central que está posta na divertida comédia é, na real, uma afronta a um tabu consolidado na sociedade: não existiria a figura do ex-gay, uma vez que a opção pela homosexualidade seria um caminho sem volta. O mote é interessante, mas reina grande expectativa sobre como os autores desatarão esse nó. Enquanto isso, divirta-se, sem preconceitos, com Macho Man.

terça-feira, 17 de maio de 2011

A Casa das Estrelas

* Recomenda-se ler a postagem No Reino da Fantasia, de 26/04/2011

A Casa é o que sou

Sem ela nada seria

Não fui eu quem sonhou

A Casa só existia

“Quando eu tinha mais ou menos quatro anos, eu “criei” Casa das Estrelas. Só quem tinha acesso a tal lugar era eu e meu pai. Eu costumava dizer aos meus irmãos, primos e amigos deles que os levaria lá, eles - sabendo que a Casa não passava de um fruto de minha fértil imaginação -, acompanhavam-me sempre pelos caminhos malucos que eu inventava. Eram horas de ginástica, que incluíam abaixa-levantas, rodadinhas e pulinhos e engraçados. Tudo, é claro, estava no mapa, ao qual eu e meu pai éramos os únicos que tínhamos acesso.


Incrivelmente sempre que eu me propunha a levar pessoas estranhas para lá, acabava perdendo-me no meio do caminho. A minha explicação era a única plausível: a Casa, que naturalmente, tinha vontade própria – não os queria lá.


E a Casa das Estrelas possuía moradores também: o Gleds, o Bleds – que eram gêmeos – e o Gledson – que era o irmão caçula. Não lembro da existência de nenhuma mulher na Casa.


Eu realmente não tinha muitos(as) amigos(as) aos quatro anos. Inclusive porque eu odiava a maioria das pessoas que se interpunham em meu caminho. Eles realmente eram muito chatos em comparação aos moradores da Casa das Estrelas, que sempre tinham alguma novidade ou algum fato intrigante, que eu me encarregava de narrar às pessoas que não tinham acesso à Casa.


Existiam várias filiais da Casa das Estrelas – não me lembro bem se eram nove, 11 ou 13, mas sempre gostei de números ímpares...-, algumas inclusive eram habitadas por fantasmas.


E cada filial tinha sua peculiridade. Não me lembro de nenhuma em especial, fora a dos fantasmas, fora a dos fantasmas. E em uma casa eu ia quando estava feliz, em outra quando tinha medo e em outra quando estava triste...Era ali o meu refúgio. Ninguém podia me incomodar ou ter acesso aos meus problemas enquanto eu estivesse l´.


E esse livro é uma busca de mim, da guriazinha que ficou esquecida em algum dos cantos da Casa das Estrelas. Porque hoje eu não tenho mais tempo para fugir, embora não me falte vontade. (...)


Algumas partes de mim ficaram por lá. Quando eu encontrar e entender o mapa, volto para buscá-las!"


A Casa das Estrelas esta lá

Pouco além do que espero

Fica lá a me esperar

Guardando as coisas que quero

** Do livro A Casa das Estrelas, inédito, de Mariana Dutra, ora exilada em Buenos Aires, buscando um caminho que e leve de volta às estrelas.

domingo, 8 de maio de 2011

A formatura

*Relembrando dona Thélia!

Minha santa mãe, a dona Thélia, jamais me perdoou por não ter sido convidada para a minha formatura no Jornalismo da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, a Fabico da UFRGS. Acho que foi lá pelo ano de 1977, quando retornei ao curso para conseguir me graduar, depois de três anos afastado. À época trabalhava na Rádio Guaíba, já estava casado, passava férias em Florianópolis e precisei vir a Porto Alegre apenas para a formatura. A viagem foi em grande estilo, de avião, pela falecida Vasp, eu e minhas sandálias franciscanas, uma calça jeans surrada e camiseta.


E foi assim que me apresentei para a formatura numa das salas da Fabico, no final da manhã. Aqui cabe explicar que a turma da faculdade era um tanto alternativa, para não dizer anárquica, naqueles idos dos anos 70 do século passado. Eram uns 30 formandos, grande parte deles já veteranos, só esperando receber o canudo para regularizar a situação profissional. Mas ninguém escaparia ao ritual exigido para as formaturas, mesmo que de forma discreta e em sala de aula. Pelo que lembro, apenas uma colega teve a coragem de convidar a família para a cerimônia.

Os coitados dos familiares ficaram chocados com a algazarra que a turma fazia a cada nome chamado para o juramento profissional. Ao final, o professor Guerreiro, diretor da faculdade e condutor da cerimônia, fez uma fala breve e cumpridora. Em seguida tratou de encerrar o ato, porque um dos gaiatos formandos ameaçava com um discurso e homem não queria correr riscos de ouvir mais bobagens ou alguma critica ao regime ditatorial que vigorava no Brasil de então.

Depois da formatura, aproveitei para filar o almoço na casa da dona Thélia. Foi quando ela teve o choque:

- Veio para a formatura? Que formatura? E por que eu não fui convidada? Menino, isso não se faz com uma mãe!

Dona Thélia sempre prezou que os filhos cursassem a universidade e a formatura era o ápice desse orgulho materno. Acho que eu era o primeiro filho a se formar, não em arquitetura como ela gostaria, porém em Jornalismo que ela apenas tolerava, mas isso pouco importava diante da insensibilidade de não convidá-la para a cerimônia. Era muita desfeita para uma mãe zelosa com o futuro dos seus rebentos. Dona Thélia era uma figura, calabresa na origem por parte de mãe e, até por isso, não media as palavras quando era desfeitada.

- Olha o que este menino me aprontou. Não me convidou para a formatura, eu que sonhei com isso toda a vida.

Estava me sentindo o pior dos filhos e não adiantava explicar a simplicidade da cerimônia ou que eu não dava tanto valor ao ato.

- Pra ti pode não ter valor, mas pra tua mãe era muito importante. Agora o que eu vou dizer para as tuas tias e as amigas da Igreja?

Essa era a chave para compreender o tamanho da frustração da dona Thèlia, que mantinha uma disputa velada com suas irmãs e as amigas devotas, comparando quem tinha mais filhos na universidade. Que curso sem valor era esse que o filho tinha vergonha de levar a mãe para a formatura? Dona Thélia perdia pontos preciosos na competição e isso eu só avaliei durante o sermão naquele indigesto almoço. (Ela dava tanto valor as formaturas que, anos antes, no colégio Rosário pediu ao Irmão José Otão, então reitor da PUC, para que me entregasse o diploma de conclusão do curso ginasial. O bondoso irmão concordou e lá fui eu, todo pimpão, de fatiota, receber o canudo da mais alta autoridade da mesa)

Deve ter sido praga de mãe, e praga poderosa, as torturas a que tenho sido submetido, desde então, em formaturas. (...)


Devo confessar que também fiz minhas macaquices e curti muito as formaturas dos meus filhos mais velhos – Rafael em Educação Física e Flávia em Psicologia. Nas duas cerimônias, foi inevitável a lembrança da mágoa e da frustração da dona Thélia por não ter participado da minha formatura. Ali estava eu, feliz da vida com o sucesso dos meus filhos, mas carregava a culpa de não ter permitido que a dona Thélia realizasse o sonho de ver seu filhinho formado, mesmo que fosse em Jornalismo. Deu nó na garganta. Mãe, como eu gostaria de poder voltar no tempo e reparar aquele equívoco da juventude. 

*Editado a partir da publicação original em 25/05/2010