Na antiga redação da Zero Hora, o espaço destinado à barulhenta editoria de esportes ficava apartado do restante. O local era conhecido por Jaula, não sei se porque ali só coabitavam feras ou porque o formato da peça assemelhava-se a um abrigo de animais. Era uma espécie de longo corredor, cercado das mesas de repórteres e editores. Na hierarquia, a mesa do editor de esportes, na época (década de 80) o Emanuel Mattos e depois o Nilson Souza, situava-se ao fundo do corredor. Como eu era um dos subeditores, minha mesa era próxima, também no fundão.
Este preâmbulo, quase um nariz de cera, é necessário para relatar um dos meus penares: a capacidade de atrair chatos. As redações de jornais e a editoria de esportes em particular exercem um fascínio indescritível sobre o malario de todos os matizes - boleiros em fim de carreira, técnicos desempregados, gente dos esportes amadores pedindo espaço, mães e pais de atletas promissores, uma fauna, enfim. Naquela época e naquele cenário não era diferente.
A presença dos chatos proporcionava momentos hilários também. O queridíssimo Nilson Souza era vítima recorrente de uma brincadeira. O mala aparecia na porta da editoria e perguntava quem era o chefe. O pessoal apontava o Nilson, careca com tufos laterais de cabelos brancos, mas fazia uma advertência;
- Fala alto porque ele é meio surdo.
E lá se ia o chato ancorar na mesa do Nilson, aos berros:
- O SENHOR É QUE É O CHEFE?
Concentrado no trabalho, nas primeiras vezes o Nilson sempre levava um susto.
- Não precisa gritar, meu amigo, que eu não sou surdo.
Imaginem a cena: toda a redação parada, contendo o riso e esperando o desfecho da abordagem.
Porém, mais do que o Nilson, eu era vítima constante dos chatos de redação. O cara adentrava à Jaula, sem cerimônia, percorria todas as mesas e parava na minha, nos momentos mais inoportunos, trazendo as questões mais estapafúrdias e que não me diziam respeito. Isso sem contar a minha coleção particular de chatos, que não é pequena. Acredito que tenho um temperamento afável, por isso não hostilizo os vocacionados para a chatice, o que lhes passa a idéia de que sou receptivo aos seus papos e vou resolver seus problemas. Cria-se, então, um circulo vicioso: chato bem tratado vira reincidente e nunca mais larga do teu pé, aumentando gradativamente sua freqüência e suas demandas. O chato te adota.
Agora mesmo tenho sido visitado com assiduidade na repartição por um sujeito com o qual trabalhei anos atrás. Não importa o que eu esteja fazendo, ela senta na minha frente e começa um diálogo, que respondo educadamente mas por monossílabos, sem que ele pare de matraquear. Outro dia ele se superou e, quase aos berros, me avisou da porta de entrada:
- Tem um maluco aqui na porta querendo reformar o mundo. Como tem chato nesta vida, tu não achas?
Era só o que me faltava: o chato criticando o mala amalucado.
Até pretendia traçar um perfil com as principais características do chato, mas já acho que isso é dispensável. O chatonildo é reconhecível na primeira mirada ou assim que começa a falar. O que me preocupava, entretanto, era que a atração que exerço sobre essa fauna pudesse ser um indicativo forte de que eu também era um deles. Mas logo afastei a idéia porque chato odeia concorrência de outro chato, como vimos acima. Prefiro pensar que eles grudam em mim em razão daquela lei da física, segunda a qual os opostos se atraem.
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
Toniolo Vive! - 2
Foi só eu lembrar o figuraço que foi o Toniolo para choverem manifestações de amigos comuns, relembrando outras passagens da vida deste personagem petropolitano que virou figura lendária da cidade. Descobri até que existia um site, com histórias em quadrinhos (toniolopichador.com.br), sobre as peripécias do amigo que conhecíamos por Aranha. Descobri também que o nosso bom Toniolo tem mais de 460 referências no Google, entre as quais uma musica que virou o hit em 2007 da banda Baby Doll, que se vangloria de ter inventado o “rock pornô”. (E eu que pensei que já tivesse visto tudo nesta vida). A música “Quem? Toniolo” não tem nada de pornografia, mas é uma exaltação ao rei da pichação, na sua versão mito. De acordo com os roqueiros, “Quem?Toniolo carrega a "identidade sonora" da banda, praticamente uma fusão do hard rock com o punk! Vai um trecho e o refrão:
Muros pichados, cartazes colados, cruzando o Estado
Ele vai se manter
Gênio maldito, um tipo esquisito, a lenda, o mito
Que todos querem ser
É procurado, um cara marcado, que já foi caçado
Agora eles vão ver
Luta sozinho, procura um caminho, espeta o espinho
Nos donos do poder
(Refrão)
Toniolo!!!
Diz pra mim qual é teu nome, o teu jogo
Quem é? Toniolo!!!
Cruzando a noite como um risco de fogo
Confesso que desconhecia essa música e outras citações ao Toniolo, inclusive em artigos, monografias e teses de mestrado. Assim, em letra, música, quadrinhos e outras manifestações, começa a se fazer justiça a um pioneiro, a um homem devotado a uma causa: a pichação de seu próprio nome em prédios, muros, calçadas e monumentos. É o momento de resgatar também a história de sua pichação mais audaciosa que cheguei a referir na crônica anterior, admitindo não saber se tinha sido bem-sucedida. Pois, fui pesquisar e encontrei uma matéria do site Terra, de 2006, que conta o episódio em detalhes:
”Além de usar adesivos e pandorgas com o próprio nome (incluindo uma versão com lâmpadas, para exibições noturnas), Toniolo inovou ao avisar com antecedência seus ataques.
Em janeiro de 1984, último ano do regime militar no Brasil, ele anunciou no programa Guaíba Revista, então apresentado por Lasier Martins na rádio Guaíba AM:
- No dia 17 deste mês, às cinco da tarde, vou pichar o Palácio Piratini.
A notícia repercutiu. O então governador, Jair Soares, não quis pagar para ver, e colocou dezenas de policiais militares de prontidão em frente ao prédio. Para identificar o pichador, havia uma foto 3X4 obtida nos arquivos da polícia civil, onde ele trabalhara 17 anos. O retrato, defasado, mostrava-o cabeludo.
Na hora marcada, ninguém suspeitou do homem calvo que saía da Catedral Metropolitana e se dirigia à sede do governo, distante 50 metros.
- "Boa tarde, irmãos!"
A saudação confundiu os brigadianos, que deixaram passar quem eles acreditavam ser algum padre da paróquia. Tarde demais: Toniolo conseguiu pichar as letras T, O, N, I, O... assim que concluiu o "L", foi detido (foto). Deu tempo até para colocar o pingo no "I".
Encaminhado no mesmo dia ao Hospital Psiquiátrico São Pedro, para avaliação, mais uma vez ele driblou seus captores. "Eu conhecia o pessoal do hospício, pois levava muita gente lá quando trabalhava no Estado". Assim que chegaram ao famoso endereço na avenida Bento Gonçalves, adiantou-se vários passos à frente da dupla de policiais civis que o conduzia e, espertamente, alertou na recepção:
- Estou trazendo dois dementes com "mania de policial": segurem-nos, enquanto vou buscar os documentos que esqueci na viatura, e tomem cuidado, pois eles são perigosos!
Com a inversão de papéis, os plantonistas correram em direção aos agentes, agarrando-os como se fossem mais dois candidatos à camisa-de-força. Quando desfeito o equívoco, era tarde demais. O ex-escrivão tinha escapado pelos fundos do prédio.
Em novembro do mesmo ano, ele divulgou que sua próxima investida seria contra o Palácio do Planalto, mas foi preso logo após deixar Porto Alegre no ônibus que o levaria a Brasília/DF. "Dessa vez, eu sabia que seria preso, e o objetivo era esse mesmo", revela. O mais incrível é que, até hoje, não se sabe como o nome "Toniolo" foi aparecer pichado no mesmo local e data prometidos.”
Pelo relato, já deu para perceber que o homem era fera. Só que, para mim, ainda está em aberto a principal questão: onde anda o Toniolo?
Muros pichados, cartazes colados, cruzando o Estado
Ele vai se manter
Gênio maldito, um tipo esquisito, a lenda, o mito
Que todos querem ser
É procurado, um cara marcado, que já foi caçado
Agora eles vão ver
Luta sozinho, procura um caminho, espeta o espinho
Nos donos do poder
(Refrão)
Toniolo!!!
Diz pra mim qual é teu nome, o teu jogo
Quem é? Toniolo!!!
Cruzando a noite como um risco de fogo
Confesso que desconhecia essa música e outras citações ao Toniolo, inclusive em artigos, monografias e teses de mestrado. Assim, em letra, música, quadrinhos e outras manifestações, começa a se fazer justiça a um pioneiro, a um homem devotado a uma causa: a pichação de seu próprio nome em prédios, muros, calçadas e monumentos. É o momento de resgatar também a história de sua pichação mais audaciosa que cheguei a referir na crônica anterior, admitindo não saber se tinha sido bem-sucedida. Pois, fui pesquisar e encontrei uma matéria do site Terra, de 2006, que conta o episódio em detalhes:
”Além de usar adesivos e pandorgas com o próprio nome (incluindo uma versão com lâmpadas, para exibições noturnas), Toniolo inovou ao avisar com antecedência seus ataques.
Em janeiro de 1984, último ano do regime militar no Brasil, ele anunciou no programa Guaíba Revista, então apresentado por Lasier Martins na rádio Guaíba AM:
- No dia 17 deste mês, às cinco da tarde, vou pichar o Palácio Piratini.
A notícia repercutiu. O então governador, Jair Soares, não quis pagar para ver, e colocou dezenas de policiais militares de prontidão em frente ao prédio. Para identificar o pichador, havia uma foto 3X4 obtida nos arquivos da polícia civil, onde ele trabalhara 17 anos. O retrato, defasado, mostrava-o cabeludo.
Na hora marcada, ninguém suspeitou do homem calvo que saía da Catedral Metropolitana e se dirigia à sede do governo, distante 50 metros.
- "Boa tarde, irmãos!"
A saudação confundiu os brigadianos, que deixaram passar quem eles acreditavam ser algum padre da paróquia. Tarde demais: Toniolo conseguiu pichar as letras T, O, N, I, O... assim que concluiu o "L", foi detido (foto). Deu tempo até para colocar o pingo no "I".
Encaminhado no mesmo dia ao Hospital Psiquiátrico São Pedro, para avaliação, mais uma vez ele driblou seus captores. "Eu conhecia o pessoal do hospício, pois levava muita gente lá quando trabalhava no Estado". Assim que chegaram ao famoso endereço na avenida Bento Gonçalves, adiantou-se vários passos à frente da dupla de policiais civis que o conduzia e, espertamente, alertou na recepção:
- Estou trazendo dois dementes com "mania de policial": segurem-nos, enquanto vou buscar os documentos que esqueci na viatura, e tomem cuidado, pois eles são perigosos!
Com a inversão de papéis, os plantonistas correram em direção aos agentes, agarrando-os como se fossem mais dois candidatos à camisa-de-força. Quando desfeito o equívoco, era tarde demais. O ex-escrivão tinha escapado pelos fundos do prédio.
Em novembro do mesmo ano, ele divulgou que sua próxima investida seria contra o Palácio do Planalto, mas foi preso logo após deixar Porto Alegre no ônibus que o levaria a Brasília/DF. "Dessa vez, eu sabia que seria preso, e o objetivo era esse mesmo", revela. O mais incrível é que, até hoje, não se sabe como o nome "Toniolo" foi aparecer pichado no mesmo local e data prometidos.”
Pelo relato, já deu para perceber que o homem era fera. Só que, para mim, ainda está em aberto a principal questão: onde anda o Toniolo?
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Que bobagem !
Em determinados horários a linha de ônibus que mais circula pela cidade é a "Recolhe".
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
Toniolo Vive!
Onde anda o Toniolo, primeiro pichador massivo da cidade? Ainda hoje é possível observar em prédios, muros ou monumentos a assinatura dele: “Toniolo”, em letra caprichada e em tinta não lavável. Ou então, “Toniolo voltará”. Havia até uma desconfiança de que outros pichadores, tal a admiração que nutriam por esse ícone do vandalismo, estavam se aproveitando para disseminar pela cidade o nome do precursor da classe. Dividiam espaços, então, com uma outra pichação – “Cecalanto” –, que ninguém sabia do que se tratava. É bem verdade que havia uma uniformidade nos escritos do Toniolo. Registre-se também que em determinada época, diante da repressão a sua atividade transgressora, o nosso Toniolo passou a desafiar as autoridades, prometendo pichar prédios públicos como o Palácio Piratini. A memória me trai, porque não lembro se chegou a cumprir a ameaça. E assim o Toniolo transformou-se na própria lenda urbana e, como tal, muita gente desacreditava da existência dele.
Agora, posso revelar: eu convivi com o Toniolo. Eu e todo o bairro Petrópolis. Chamava-se Sérgio Toniolo, mas nós o conhecíamos por Aranha, apelido que pegou, acho eu, pela forma como caminhava, desengonçado como um aracnídeo. Pois o nosso Aranha era filho de uma tradicional família do bairro e irmão mais velho do Silvio, um craque varzeano, mas diferente do mano, meio campista dos bons, nosso personagem era um futebolista apenas mediano. Porém, tinha rasgos de jogador moderno, eis que era um lateral apoiador, quase um ala do futebol atual: recebia a bola, avançava em direção ao ataque, mas nunca mais voltava, deixando todo o seu setor vulnerável aos contra-ataques. Como tinha fama de brigar bem, embora dificilmente se exaltasse, a gente pegava leve com ele, até porque era bom papo e gente do bem.
Um dia Aranha fez concurso para a Polícia e passou. Foi lotado numa delegacia qualquer como inspetor ou investigador e tudo indicava que teria uma carreira promissora a serviço da segurança dos cidadãos. Mas o Aranha era do tipo invocado, que não levava desaforo para casa. E certa noite, depois de um churrasco da turma na casa de meus pais, saiu o Aranha a pernear, como de hábito, pela avenida Protásio Alves, até que foi abordado por uma dupla de PMs que fazia a ronda no bairro. Os brigadianos provavelmente desconfiaram do Aranha a vaguear solito àquela hora da noite. E ele era realmente uma figura, digamos, estranha. Andava rente as paredes, parecendo que escapava, sorrateiro, de perseguidores imaginários. Nesse cenário, acontece a abordagem dos brigadianos. Os perseguidores imaginários materializavam-se, na cabeça do Aranha, em forma de uma dupla fardada. É importante esclarecer que existia na época uma rixa muito forte entre Brigada Militar e Polícia Civil, porque recém fora extinta a Guarda Civil e a BM assumiu todas as funções de policiamento ostensivo. Ao interpelarem o Aranha, os PMs certamente desconheciam que estavam diante de um representante da corporação civil. Estabeleceu-se então um diálogo que reproduzimos agora, numa versão livre e ligeiramente dramatizada:
- Os documentos, cidadão.
- Que documentos? Documentos pra que?
- Vamos, mostra logo os documentos.
- Não vou mostrar.
- Que que tu tá fazendo a essa hora da noite na rua?
- Não te interessa.
- Então nós vamos te prender. Vai te explicar na delegacia.
- Vem, então, Pé-de-Porco.
Pé de Porco era ofensa grave aos integrantes da briosa BM. Diante do desacato, o primeiro brigadiano avançou em direção ao Aranha, que se safou com agilidade e sacou do seu 38 (ou seria um 32?). De arma em punho, desafiou os PMs:
- Vem agora, vem, que eu vou furar voces.
A versão mais difundida do caso dá conta que um dos brigadianos, cônscio do cumprimento do dever, não se intimidou e partiu pra cima do Aranha. Ouviu-se então um tiro que ecoou na noite petropolitana. O Aranha havia disparado seu 38 (ou 32) em direção ao brigadiano, quase à queima roupa. Antes do desfecho do entrevero, é preciso explicar um detalhe fundamental. Na época, o fardamento da Brigada incluía um cinturão largo, com uma grande fivela de metal. Pois, para sorte do Aranha e do PM foi na fivela que a bala ricocheteou. Os brigadianos não revidaram, até porque o que estava na cobertura, certo de que seu parceiro fora mortalmente atingido, foi socorrê-lo, permitindo que o atirador se escafedesse na escuridão.
Dez minutos depois, quem bate a porta do solar dos Dutra, na rua Ivo Corseuil? O Aranha, muito nervoso e gaguejante:
- Acho que matei um brigadiano lá na perto do Colégio Santa Inês. Preciso me esconder porque os Porcos vem atrás de mim.
E reproduziu o sucedido, que serve de base para essa narrativa. Em seguida, despediu-se e sumiu na noite de Petrópolis. O conflito com os brigadianos resultou em inquérito, o Toniolo foi punido, ficou afastado do serviço por um bom tempo e se desencantou com a atividade policial. Desde então ficou mais arredio do que nunca. Acredita-se que foi esse episódio e seus desdobramentos na carreira, que contribuíram decisivamente para que o Aranha se transformasse de agente da lei em transgressor da lei. Particularmente, nunca mais ouvi falar do bom Aranha.
Por isso, acho que esta na hora, antes que se perca nos descaminhos da memória, de resgatar a figura do Toniolo, elevando-a a dimensão de um Elvis, de uma Elis. A legião de admiradores deste pioneiro deve ficar marcada, não mais com pichações e sim com elegantes e coloridos grafites, para que todos os espaços disponíveis exclamem – “Toniolo Vive!”. De fato.
Agora, posso revelar: eu convivi com o Toniolo. Eu e todo o bairro Petrópolis. Chamava-se Sérgio Toniolo, mas nós o conhecíamos por Aranha, apelido que pegou, acho eu, pela forma como caminhava, desengonçado como um aracnídeo. Pois o nosso Aranha era filho de uma tradicional família do bairro e irmão mais velho do Silvio, um craque varzeano, mas diferente do mano, meio campista dos bons, nosso personagem era um futebolista apenas mediano. Porém, tinha rasgos de jogador moderno, eis que era um lateral apoiador, quase um ala do futebol atual: recebia a bola, avançava em direção ao ataque, mas nunca mais voltava, deixando todo o seu setor vulnerável aos contra-ataques. Como tinha fama de brigar bem, embora dificilmente se exaltasse, a gente pegava leve com ele, até porque era bom papo e gente do bem.
Um dia Aranha fez concurso para a Polícia e passou. Foi lotado numa delegacia qualquer como inspetor ou investigador e tudo indicava que teria uma carreira promissora a serviço da segurança dos cidadãos. Mas o Aranha era do tipo invocado, que não levava desaforo para casa. E certa noite, depois de um churrasco da turma na casa de meus pais, saiu o Aranha a pernear, como de hábito, pela avenida Protásio Alves, até que foi abordado por uma dupla de PMs que fazia a ronda no bairro. Os brigadianos provavelmente desconfiaram do Aranha a vaguear solito àquela hora da noite. E ele era realmente uma figura, digamos, estranha. Andava rente as paredes, parecendo que escapava, sorrateiro, de perseguidores imaginários. Nesse cenário, acontece a abordagem dos brigadianos. Os perseguidores imaginários materializavam-se, na cabeça do Aranha, em forma de uma dupla fardada. É importante esclarecer que existia na época uma rixa muito forte entre Brigada Militar e Polícia Civil, porque recém fora extinta a Guarda Civil e a BM assumiu todas as funções de policiamento ostensivo. Ao interpelarem o Aranha, os PMs certamente desconheciam que estavam diante de um representante da corporação civil. Estabeleceu-se então um diálogo que reproduzimos agora, numa versão livre e ligeiramente dramatizada:
- Os documentos, cidadão.
- Que documentos? Documentos pra que?
- Vamos, mostra logo os documentos.
- Não vou mostrar.
- Que que tu tá fazendo a essa hora da noite na rua?
- Não te interessa.
- Então nós vamos te prender. Vai te explicar na delegacia.
- Vem, então, Pé-de-Porco.
Pé de Porco era ofensa grave aos integrantes da briosa BM. Diante do desacato, o primeiro brigadiano avançou em direção ao Aranha, que se safou com agilidade e sacou do seu 38 (ou seria um 32?). De arma em punho, desafiou os PMs:
- Vem agora, vem, que eu vou furar voces.
A versão mais difundida do caso dá conta que um dos brigadianos, cônscio do cumprimento do dever, não se intimidou e partiu pra cima do Aranha. Ouviu-se então um tiro que ecoou na noite petropolitana. O Aranha havia disparado seu 38 (ou 32) em direção ao brigadiano, quase à queima roupa. Antes do desfecho do entrevero, é preciso explicar um detalhe fundamental. Na época, o fardamento da Brigada incluía um cinturão largo, com uma grande fivela de metal. Pois, para sorte do Aranha e do PM foi na fivela que a bala ricocheteou. Os brigadianos não revidaram, até porque o que estava na cobertura, certo de que seu parceiro fora mortalmente atingido, foi socorrê-lo, permitindo que o atirador se escafedesse na escuridão.
Dez minutos depois, quem bate a porta do solar dos Dutra, na rua Ivo Corseuil? O Aranha, muito nervoso e gaguejante:
- Acho que matei um brigadiano lá na perto do Colégio Santa Inês. Preciso me esconder porque os Porcos vem atrás de mim.
E reproduziu o sucedido, que serve de base para essa narrativa. Em seguida, despediu-se e sumiu na noite de Petrópolis. O conflito com os brigadianos resultou em inquérito, o Toniolo foi punido, ficou afastado do serviço por um bom tempo e se desencantou com a atividade policial. Desde então ficou mais arredio do que nunca. Acredita-se que foi esse episódio e seus desdobramentos na carreira, que contribuíram decisivamente para que o Aranha se transformasse de agente da lei em transgressor da lei. Particularmente, nunca mais ouvi falar do bom Aranha.
Por isso, acho que esta na hora, antes que se perca nos descaminhos da memória, de resgatar a figura do Toniolo, elevando-a a dimensão de um Elvis, de uma Elis. A legião de admiradores deste pioneiro deve ficar marcada, não mais com pichações e sim com elegantes e coloridos grafites, para que todos os espaços disponíveis exclamem – “Toniolo Vive!”. De fato.
Recomendo
Será aberta na terça-feira, 27, a exposição “Os Gaúchos nas Copas”, na Usina do Gasômetro. São 24 painéis contando, com fotos e textos, a história das 18 Copas do Mundo já realizadas e a participação dos gaúchos. Acho que tem dedo do Cláudio Diestmann na seleção do material.
Filosofia do Natalício
Esta é do gênero politicamente incorreto:
“Onde vamos parar? Até Papai-Noel anda saindo com veados…”
“Onde vamos parar? Até Papai-Noel anda saindo com veados…”
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Faro fino e outras artimanhas
Diga-me o que bebes e te direi quem és. Adapto um velho ditado para relatar a história que me foi contada por uma amiga, ocorrida durante encontro de um grupo de casais. Uma das moças do grupo apresentava seu novo namorado, jovem bem apessoado, e logo nas apresentações surgiram dúvidas sobre a masculinidade do rapaz. Mulher é bicho esperto e logo sente quando algo diferente paira no ar. Foi o sucedido neste episódio. Nas escapadas ao banheiro – mulher sempre vai ao banheiro em bando – a maledicência correu solta:
- Será que ele é? Indagava uma.
- Jeitinho ele tem, completava outra.
- Coitada da fulana, não dá sorte mesmo, solidarizava-se uma terceira.
Do bar ao banheiro, do banheiro à pista de dança, a conversa girava sempre em torno do mesmo assunto. Os olhos femininos não desgrudavam do sujeito e os ouvidos estavam mais aguçados do que nunca, a espera de uma falseta. É bem verdade que as atitudes do rapaz ajudavam. Gestos afetados, olhares fugidios para outros rapazes, pouca interação afetiva com sua parceira, tudo isso contribuía para aumentar as suspeitas do mulherio. Mas o que confirmou mesmo o que elas suspeitavam ocorreu na hora de pedirem a primeira rodada de bebidas. As mulheres preferiram espumante ou refrigerante, os homens cerveja ou vinho. Quando chegou a vez dele, o pedido provocou espanto:
- Pra mim um Cooler. De Pina Colada, please. Adoro bebidinhas alcoólicas adocicadas!
As mulheres se entreolharam e não precisaram dizer mais nada. Era!
Relato a história não para fazer juízo de valor sobre o que seria um comportamento preconceituoso dessa minha amiga e de suas colegas, mas para destacar esse fino faro feminino para distinguir o detalhe que faz a diferença. Entretanto, há outro aspecto que os pretendentes às moças dessas confrarias femininas, devem estar atentos: só com a aval das confrades a relação tem chances de prosperar. É preciso primeiro conquistar as amigas, para depois consolidar o relacionamento com a musa escolhida.
Oferecer caronas a todas, mesmo que cada uma more em extremos da cidade, pagar as contas em bares e restaurantes, interessar-se por aquelas conversas femininas sem nenhum conteúdo, enfim, interagir com o grupo, sem ser muito saliente, são iniciativas apreciadas por esse verdadeiro tribunal de inquisição. Porém, se o ritual não for seguido, recomenda-se uma boa estratégia de contramedidas para as sabotagens que virão, e virão insidiosamente como só as mulheres sabem fazer. Nada será feito às claras, mas a desqualificação da vítima estará implícita em cada gesto, em cada frase. Exemplos: o moço engrena uma conversa e é abruptamente interrompido, com a troca para um assunto nada a ver. Ou, então, o sujeito tenta puxar conversa e a outra parte faz cara de paisagem, como se a pessoa não existisse. Pior são as frases soltas, as indiretas, as histórias que se referem a terceiros, mas que buscam analogia com o alvo escolhido.
- Sabe a Fulana? Flagrou o namorado na saída de um bar gay, aos beijos e abraços com um garotão. Tem mulher que é cega...
- E a Beltrana que me confidenciou que o namorado não dá no couro. Mas não espalha porque ela me contou em segredo.
- Conheço cada casal estranho. Um não tem nada a ver com o outro. Não sei como continuam juntos...
E por aí vai a maledicência, sempre evitando o confronto direto, tanto assim que o moço que caiu em desgraça não terá direito nem a ser nominado, passando a ser tratado por “aquele outro”.
Na verdade, essa ação nefasta tem outra vítima: a moça pretendida, que fica impotente diante do comportamento das amigas. Ela pode estar apaixonada pelo sapo que imagina príncipe, mas jamais vai contrariar o veredicto das confrades, que decretaram que o príncipe é sapo, sem direito a apelação. Caso contrário, vai penar no limbo das relações entre as suas iguais e isso mulher alguma consegue aceitar.
Na maturidade, a situação tende a ser pior. Imaginem um grupo de peruas descasadas sendo apresentadas para o novo namorado de uma delas, que depois de muita batalha conseguiu desencalhar e está convencida que encontrou finalmente sua alma gêmea. Acompanhem agora as impressões das amigas sobre o cidadão;
- Tem todo o jeito de ser casado e cheio de filhos.
- Sei não, acho que é gay.
- Tem cara de pé rapado.
- Xiii, é parecido com o meu ex, que era uma boa porcaria.
E lá se vai mais uma alma gêmea para o purgatório, senão para o inferno.
Nada contra o sujeito. É que mulher mal-revolvida e carente detesta a felicidade alheia e parte do pressuposto que cada uma que se emparceira de novo, é uma a menos na confraria. E aí é que vem o grande temor, a maldição das maldições: será que vou sobrar só eu?
Publicado originalmente em Coletiva.net, em julho de 2009
- Será que ele é? Indagava uma.
- Jeitinho ele tem, completava outra.
- Coitada da fulana, não dá sorte mesmo, solidarizava-se uma terceira.
Do bar ao banheiro, do banheiro à pista de dança, a conversa girava sempre em torno do mesmo assunto. Os olhos femininos não desgrudavam do sujeito e os ouvidos estavam mais aguçados do que nunca, a espera de uma falseta. É bem verdade que as atitudes do rapaz ajudavam. Gestos afetados, olhares fugidios para outros rapazes, pouca interação afetiva com sua parceira, tudo isso contribuía para aumentar as suspeitas do mulherio. Mas o que confirmou mesmo o que elas suspeitavam ocorreu na hora de pedirem a primeira rodada de bebidas. As mulheres preferiram espumante ou refrigerante, os homens cerveja ou vinho. Quando chegou a vez dele, o pedido provocou espanto:
- Pra mim um Cooler. De Pina Colada, please. Adoro bebidinhas alcoólicas adocicadas!
As mulheres se entreolharam e não precisaram dizer mais nada. Era!
Relato a história não para fazer juízo de valor sobre o que seria um comportamento preconceituoso dessa minha amiga e de suas colegas, mas para destacar esse fino faro feminino para distinguir o detalhe que faz a diferença. Entretanto, há outro aspecto que os pretendentes às moças dessas confrarias femininas, devem estar atentos: só com a aval das confrades a relação tem chances de prosperar. É preciso primeiro conquistar as amigas, para depois consolidar o relacionamento com a musa escolhida.
Oferecer caronas a todas, mesmo que cada uma more em extremos da cidade, pagar as contas em bares e restaurantes, interessar-se por aquelas conversas femininas sem nenhum conteúdo, enfim, interagir com o grupo, sem ser muito saliente, são iniciativas apreciadas por esse verdadeiro tribunal de inquisição. Porém, se o ritual não for seguido, recomenda-se uma boa estratégia de contramedidas para as sabotagens que virão, e virão insidiosamente como só as mulheres sabem fazer. Nada será feito às claras, mas a desqualificação da vítima estará implícita em cada gesto, em cada frase. Exemplos: o moço engrena uma conversa e é abruptamente interrompido, com a troca para um assunto nada a ver. Ou, então, o sujeito tenta puxar conversa e a outra parte faz cara de paisagem, como se a pessoa não existisse. Pior são as frases soltas, as indiretas, as histórias que se referem a terceiros, mas que buscam analogia com o alvo escolhido.
- Sabe a Fulana? Flagrou o namorado na saída de um bar gay, aos beijos e abraços com um garotão. Tem mulher que é cega...
- E a Beltrana que me confidenciou que o namorado não dá no couro. Mas não espalha porque ela me contou em segredo.
- Conheço cada casal estranho. Um não tem nada a ver com o outro. Não sei como continuam juntos...
E por aí vai a maledicência, sempre evitando o confronto direto, tanto assim que o moço que caiu em desgraça não terá direito nem a ser nominado, passando a ser tratado por “aquele outro”.
Na verdade, essa ação nefasta tem outra vítima: a moça pretendida, que fica impotente diante do comportamento das amigas. Ela pode estar apaixonada pelo sapo que imagina príncipe, mas jamais vai contrariar o veredicto das confrades, que decretaram que o príncipe é sapo, sem direito a apelação. Caso contrário, vai penar no limbo das relações entre as suas iguais e isso mulher alguma consegue aceitar.
Na maturidade, a situação tende a ser pior. Imaginem um grupo de peruas descasadas sendo apresentadas para o novo namorado de uma delas, que depois de muita batalha conseguiu desencalhar e está convencida que encontrou finalmente sua alma gêmea. Acompanhem agora as impressões das amigas sobre o cidadão;
- Tem todo o jeito de ser casado e cheio de filhos.
- Sei não, acho que é gay.
- Tem cara de pé rapado.
- Xiii, é parecido com o meu ex, que era uma boa porcaria.
E lá se vai mais uma alma gêmea para o purgatório, senão para o inferno.
Nada contra o sujeito. É que mulher mal-revolvida e carente detesta a felicidade alheia e parte do pressuposto que cada uma que se emparceira de novo, é uma a menos na confraria. E aí é que vem o grande temor, a maldição das maldições: será que vou sobrar só eu?
Publicado originalmente em Coletiva.net, em julho de 2009
Filosofia do Natalício
Esta é típica de para-choque de caminhão:
" As mulheres perdidas são as mais procuradas."
" As mulheres perdidas são as mais procuradas."
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