sábado, 10 de abril de 2021

Folhetim: A moça do supermercado - Capítulo 6

 * Mais  ou menos baseado em fatos reais

Terminada a carona,  na chegada  a  casa da moça do supermercado num bairro distante das regiões centrais, a mãe da caroneira aparece para recebê-los. A senhora deixou uma ótima impressão desde a primeira  visada. Coube a Alexia fazer as apresentações:

- Mamis este é o meu amigo lá  do super, o seu..., o seu. Ái, que coisa, cumé  mesmo o nome do senhor?

Foi quando ele se deu conta de que, apesar dos cada vez mais frequentes encontros no supermercado e de pelo menos duas caronas, jamais havia se apresentado ou dito seu nome.

- Adalberto, mas os amigos me chamam de Adalbertinho ou mesmo Betinho, as ordens - tentou descontrair.

- Professor Adalbertinho, - completou a moça. “Ele é professor de livros, mãe. Foi ele que me deu aquele livro do senhor mais velho que namora a guria, que eu lhe falei que achei estranho, lembra mãe?”

A senhora assentiu com a cabeça e aí Adalbertinho pode perceber nela um par de seios resguardados, mas nem tanto, sob uma blusa branca amarrada à cintura, deixando a mostra também parte de uma barriguinha que valia a pena ser afagada e talvez coberta de beijos em eventuais preliminares. De cima a baixo a mãe  era um clone mais maduro de Alexia, até deveria se chamar Alexia Sênior, mas o nome era outro:

- Muito prazer, Suellen, com dois éles,- fez questão de salientar, para depois explicar que o nome tinha sido inspirado numa série televisiva, “acho que era Dalas, Texas, coisa lá dos gringos”.

“Bah, a mãe também dá um caldo!”, pensou o professor, mas logo se recriminou por ter imaginado uma expressão tão chula, ainda mais depois do convite que recebeu:

- O senhor não gostaria de entrar, tomar um café, comer um pedaço de bolo? Fiz um bolo de milho, o preferido da Alexia. O senhor não gostaria de provar?,- convidou e insistiu a senhora de seios promissores e barriguinha idem.

- Acho que está ficando tarde e eu não queria incomodar,- acovardou-se de novo o sujeito.

- Que nada!  Eu preparo o café bem ligeiro, enquanto a Alexia se arruma para o aniversário da Valdirene.

A possibilidade de ver a sua musa com roupa de festa animou o professor, que aceitou o convite e entrou na casa como se ali fosse um sacrário. Agora tinha certeza de que dera um passo importante nas suas intenções em relação a moça.

(Continua)

sábado, 3 de abril de 2021

Folhetim: A moça do supermercado - Capítulos 4 e 5

A moça do supermercado – Capitulo 4

A obsessão do maduro professor pela mocinha do supermercado crescia a cada  ida dele ao local de  trabalho dela.  A preferência era para o final de tarde, mesmo que fosse para comprar dois ou três pães cacetinhos e alguns fiambres para um lanche noturno, próprio de um solteirão. Ele já tivera muitos amores na vida, mas nada que o forçasse a dividir cama, mesa e banho com as parceiras. No caso de Alexia, já não estava mais enamorado, mas perdidamente apaixonado. Ela   tinha lá seus predicados estéticos, só que a diferença de idade conspirava contra o avanço na relação entre os dois, agora ainda restrita a atendente de caixa e consumidor.

Eventualmente passava pelas gondolas de  refrigerantes e aí sentia um constrangimento extra, porque era inevitável lembrar do Tio da Sukita, dos comerciais dos anos 1990, protagonizado por  um cinquentão como ele, que tentava paquerar uma jovem garota,  saboreadora do refrigerante Sukita. Os fora que ele  levava da moça, com um “desculpa, tio”,  faziam a graça da produção, de grande sucesso à época. Alexia provavelmente nunca teria assistindo àqueles comerciais, mas a recordação ficava martelando na cabeça dele, como se fosse uma acusação: Tio da Sukita! Tio da Sukita! Tio da Sukita. Temia que um dia seria chamado de tio.

Pior mesmo foi a vez em que estando junto a sua caixa preferida, pronto para estabelecer o diálogo com musa, ouviu uma voz estridente atrás dele:

- Professor, professor, o senhor por aqui! Que surpresa.  Estava mesmo precisando falar com o senhor.

Era Larissa, uma ex-aluna, daquelas que aprisionam os professores com suas conversas banais e que agora queria opinião sobre um livro que estava começando a ler. “Só vou continuar a leitura depois de ouvir a abalizada opinião do senhor”, sentenciou a chata de voz estridente,  diante de um interlocutor que tentava desviar o olhar daquele corpanzil, maneando a cabeça para poder acompanhar, logo adiante, os gestos graciosos de Alexia na sua faina rotineira.

Foram minutos seculares de não atenção à ex-aluna, enfim despachada com uma opinião que garantiria que ela perderia/gastaria um bom tempo com o livro questionado, em vez de ficar atazanando a paquera dos cinquentões.

O cerco a Alexia continuou. O professor passou a circular com tanta frequência pelo ponto de ônibus como pelo supermercado. Só não se animava a oferecer carona cada vez que avistava sua amada porque temia parecer invasivo. Imaginava a moça reagindo de forma intempestiva, acusando-o de assédio. Imaginava mais e pior: uma denúncia num jornal popular, com uma manchete do tipo “Professor tarado age no ponto de ônibus”, com uma linha de apoio assim:  “Tiozão começava oferecendo carona’.  Precisaria  mudar de cidade, quiçá  de estado ou mesmo do país, com a Policia Federal e a Interpol no encalço. Chegou a suar frio só de pensar nas repercussões de uma denúncia desse quilate contra ele que, afinal, era um educador.

O motivo aceitável para uma nova abordagem na parada foi uma chuva torrencial num fim de tarde de verão. A oferta  de  carona nessa situação seria um ato de generosidade e não um assédio, pensava ele. Dito e feito. Lá estava ela abrigando-se precariamente da chuva na parada lotada e sem proteção nas laterais. Quando ele encostou o carro, uma rápida buzinada chamou a atenção da moça que reconheceu o benfeitor e desta vez não hesitou em se instalar no banco do carona.

Molhada dos pés à cabeça, era uma visão para mexer e remexer com todas as fantasias do professor. Os cabelos estavam molhados e escorridos  como se recém tivesse saído do banho, a camiseta colada ao corpo realçava os seios de bicos salientes e aqueles joelhos e nacos de coxa tentadores e molhados eram  carentes do afago de uma toalha.

- Quem sabe a gente para em algum lugar para poderes te secar e até tomar um banho quente,- propôs o motorista, prenhe de más intenções

- Seria uma boa, mas onde?,- indagou a moça.

Capítulo 5 

* Fatos reais, personagens fictícios

(“E agora, convido ou não convido?”), pensou o professor, depois de sugerir que a moça do supermercado, sua caroneira molhada pela chuva dos pés à cabeça, deveria parar em algum lugar para secar-se e tomar um banho quente. A sugestão tinha alta dose de más intenções, mas ele ficou sem resposta, ou melhor, gaguejou outra coisa quando ela perguntou:

-  Seria uma boa, mas onde?

- Hã, sim, a tua casa é muito longe daqui?

Havia vários motéis no caminho. O preferido dele era o A2, sempre disponível e de preço compatível. Só que a moça merecia coisa melhor, tipo o Blue Star ou o Caliente, com seus apartamentos mais amplos e banhos que comportavam a movimentação de um casal debaixo do chuveiro, no caso ele e ela. Mas ele se acovardou e não levou adiante a proposta.

Pelo menos agora não teria a concorrência do motoboy andrajoso (“Maicon, Maichel, Michel, um bostinha...”) que interrompeu sua ´primeira carona à moça, encarapitando-a na sua moto de baixa cilindrada e escapulindo, soltando fumaça e barulheira, rumo a destinos suspeitos, imaginava o tiozão.

De novo foi Alexia quem tomou a iniciativa da conversa, relatando que precisava chegar logo em casa, trocar de roupa e “bora lá”, exclamou, para o aniversário da amiga Valdirene, a popular Val, colega de ofício, mas em outra rede de supermercados.

- Eu e a Val semos amigas deusde muito tempo. Agora a gente formemos um trio também com a Shayene, outra miga superlegal. O único problema da Shayene é que ela só veste roupas de cor salmão, aquela cor rosinha, sabe?! Parece um peixe, hehehe,- riu faceira.

Em nome da causa maior que era avançar na conquista da moça, o ´professor ignorou as flexões verbais que maltratavam o vernáculo e só conseguiu acrescentar um “muito interessante isso”, enquanto ela continuou a tagarelar  outras banalidades sobre suas relações de amizade.

Já caia a noite quando eles chegaram à casa dela, um modesto mas bem conservado chalé de madeira, cercado de outras casas simples, numa rua abandonada pelos serviços públicos, num bairro periférico. A casa da moça destacava-se das demais não apenas pela pintura verde musgo, mas também pela cerquinha de madeiras brancas na frente e um bem cuidado jardim florido, formando um conjunto até harmonioso, reconheceu o professor.  Eis que surge no portão da casa, uma cópia quarentona e também deslumbrante da sua musa.

- Aquela lá é a minha mamis, mas parece que é minha ermã, né?!- apresentou a garota, aparentando orgulho pela boa forma da senhora.

 (continua)

domingo, 28 de março de 2021

A moça do supermercado - Capítulo 3

*Inspirado em fatos reais, ligeiramente ficcionados.

Pela enésima vez ele ouviu aquela maldita senha:

- CPF na nota, senhor?

Só que dita por Alexia, a moça da caixa pela qual estava perdidamente apaixonado, adquiria para ele uma conotação poética.  Era dado a exageros literários o professor enamorado, ainda mais diante da voz suave dela. Ele sempre concordava em informar o CPF que era a forma de ficar mais alguns segundos junto a sua musa supermercadista.

Pensou se um dia não valeria mudar o ritual, não aceitar incluir aquela sequência de números para controle do leão do Imposto de Renda e responder a indagação com outra, direta e ousada.

- Aceitas o convite para um jantarzinho?

Haveria formalidade no convite, assim era o seu jeito. Entretanto, sem que conseguisse controlar, parte do convite pensado escapou em voz alta e foi ouvida pela moça:

- ...um jantarzinho?

- O senhor falou alguma coisa?

- Hã, sim, quero dizer, não!

O ato falho foi ouvido também pelo garoto de cabelo moicano que ajudava  a empacotar as mercadorias.

- Acho que o tiozão  quer te pegar, - advertiu o indiscreto, depois que o professor, um tanto constrangido, saiu com suas compras.

- Bem capaz! Um senhor tão bonzinho, simpático, respeitoso. Até já meu deu um livro de presente.

- Aí tem! – insistiu o moicano fake.

- Bem capaz!, retrucou de novo a moça.

A todas essas o cerco continuava, agora com uma logística que o professor apostava que daria resultado. Como controlava todos os horários da moça, passou a vigiar as paradas de ônibus próximas ao supermercado. Depois de duas ou três incursões,  bingo, lá estava ela à espera da condução para casa, num fim de tarde. Só que o ônibus que ela tomaria, um articulado fumacento, estava se aproximando rapidamente e ele teve  que acelerar seu automóvel, modesto 1.0  de potência, para atingir o alvo na parada antes do coletivo.  Assim que chegou, o mostrengo articulado resfolegou atrás do seu carro, mas deu tempo dele fazer sinal para ela,  que, de início, não  o reconheceu, ao que ele gritou “carona?”. Ela ainda hesitou,  mas acabou entrando pela frente no carro, enquanto o motorista do coletivo já dava sinais de impaciência, acelerando sua máquina desnecessariamente.

- Bah, como o senhor  me reconheceu? Não vai sair do seu caminho?

Ele deu a desculpa de que passava regularmente por ali e, não, não sairia de seu roteiro habitual, pois morava na mesma direção  dela, mesmo sem saber, ainda, para que bandas ficava a casa da moça.

Ao ajustar esse detalhe com ela, pode observar que a caroneira vestia uma saia curta, reveladora de um par de joelhos bem torneados e indícios de coxas atraentes. Ficou perturbado com a  imagem e, a custo, conteve a vontade de escorregar a mão  até os membros à mostra  e depois aventurar-se mais acima.

Foi ela quem tomou a iniciativa da conversa, falando do livro que tinha recebido dele, Lolita, de Nabokov, e se queixou que não tinha entendido muito bem o enredo. “Parece que o homem da história é mais velho que a guria, uma coisa estranha. Ainda se tivessem figuras pra ajudar a compreender, ficava melhor, o senhor  não acha?”.

- Hã, hã, claro, -  limitou-se a responder, mas, na verdade, ele pensou “Céus, onde estou metido!”

De repente, mais uma surpresa negativa estava reservada para ele:

- Pára, Pára.- pediu ela, quase gritando.

- O que aconteceu?-

- Pára que eu vi agora o Michael, que é meu amigo e mora perto da minha casa. Aí o senhor  não precisa me levar até lá.

O estraga prazeres do Michael era um cabeludo, andrajoso nas suas calças e jaqueta jeans surradas. Pilotava uma moto de baixa cilindrada, usada para  entregas da Pizzaria do Bob, “a melhor pizza do pedaço”, conforme estampado na caixa traseira do veículo.

Depois de um “brigado, brigadão mesmo”, lá se foi ela, empoleirada na moto com a descarga aberta, cabelos esvoaçantes, porque  o motoboy não tinha outro capacete, além do dele, cheio de adesivos e uma frase em destaque: “Deus é Fiel”.

O professor perdera mais uma batalha, mas tinha certeza que a guerra não.

 (continua)

 

sábado, 20 de março de 2021

A moça do supermercado – Capitulo 2

*Inspirado em fatos reais, mas nem tanto

O tiozão se encantou com a moça do supermercado desde a primeira vez que a viu empacotando as compras dele.  O encantamento foi tão intenso que ele passou a assediá-la em pensamentos.  Chegou mesmo a fantasiar uma noitada de luxuria, da qual foi despertado com um pedido prosaico à beira do caixa:

- CPF na nota, senhor?

A moça tinha lá seus predicados  e mexia não apenas com o imaginário mas também  com o bolso dele, eis que se tornara um compulsivo consumidor naquele supermercado.  Frustrado, porém, com sua incapacidade para uma abordagem mais direta ao alvo de sua obsessão,  decidira  não mais frequentar a loja.  Tinha que ficar longe da tentação, pensou e prometeu.

Só que o recolhimento durou menos de um mês e logo lá estava ele consumindo o  essencial e o acessório, só para  poder interagir por  breves momentos  com sua musa. De tanto frequentar aquele ponto, ele sabia toda a escala de trabalho dela e passou a ser reconhecido pela moça a cada presença.

- Oi, tudo bem com o senhor?

Aquele “senhor” doía, mas era melhor do que “tio” e o sorriso compensava, mesmo que fosse atenuado pelo aparelho corretivo nos dentes.

Ainda sem coragem para iniciativas mais diretas, optou por mimoseá-la com pequenos agrados que fossem simbólicos, entregues discretamente na caixa, com uma desculpa encaminhada e num formalismo adequado a sua idade.

- Não me leve a mal, mas acho que isso aqui tem tudo a ver contigo. Poderias aceitar?

O primeiro agrado foi sugestivo: o livro Lolita, do russo Nabokov, que relata ocaso amoroso entre um professor de meia idade, como ele, e uma menina de 12 anos, o que não era o caso, mas, enfim, valia as segundas e terceiras intensões contidas na oferta literária.

Ele ficou ligeiramente decepcionado quando ela perguntou: “Tem bastante figuras neste livro? Gosto de livros com bastante figuras.” Aí se deu conta de que devia ter começado com o Pequeno Príncipe ou que a moça estava mais para as revistas Contigo e  Ti-Ti-Ti do que para os romances.

Foi uma brochada mental, mas ele logo se recuperou porque passou a imaginá-la atendendo no caixa vestida apenas com o crachá, que cobria só o umbigo e trazia estampado aquele nome que para ele era sinônimo de erotismo: Alexia. Durou pouco, porém, a fantasia, desmanchada por aquela maldita frase.

- CPF na nota, senhor?

(continua)

 

sábado, 13 de março de 2021

Despedida de solteira

 *Inspirada em fatos reais, mas os nomes são fictícios

Alceu faz o gênero pegador jeitoso. É do ramo, mas cerca o naipe feminino com parcimônia, em fogo lento, mas determinado. Foi assim com Carla, que conheceu num evento político em Brasília e que preencheu todos os predicados que ele aprecia nas mulheres:

- Era uma morena do tipo mignon, com  tudo no lugar,- vangloriu-se.

Na sequência, Alceu  precisou fazer um bom investimento, estabelecendo uma ponte área Porto Alegre-Rio, onde a moreninha residia. Eram tempos pré-pandemia.  “Valeu cada checkin”, garantiu faceiro.

Ele estava vivendo nesse êxtase quando recebeu a convocação da carioca:

-  Mor, vem pra cá no fim de semana. Vou ficar te esperando ansiosa.

Alceu revela que foi difícil controlar a excitação corporal durante o voo, cada vez que lembrava do jeito como ela fizera a convocação.  O melhor foi a surpresa que a amada havia reservado: uma pousada na região dos Lagos, onde poderiam ficar bem à vontade no fim de semana e mais um pouco.

- Foi uma verdadeira maratona etílica, gastronômica, amorosa. Não havia hora nem lugar para aquilo. Bastava uma bebidinha para nos atiçar de novo. Loucura, loucura, loucura,- vangloriou-se de novo, apelando para uma imitação fajuta do Luciano Huck.

Na última transa do último dia, ainda relaxados na cama redonda e desfrutando da agradável brisa que vinha de fora, olho  no olho, os dela marejados, Carla fez uma revelação:

- Mor, esta foi a última mesmo. Meu casamento está marcado para o próximo sábado, mas eu precisava ficar com esta lembrança.

Foi um choque tão grande para Alceu que ele não quis saber de toda a história, que  a moça insistia em contar, desculpando-se, agora entre soluços. Desde então, ele nunca mais foi o mesmo e hoje vagueia pelos eventos políticos na vã esperança que apareça, entre convidados  chatos, uma moreninha com tudo no lugar, enquanto afirma lamuriento:

- Pode parecer uma história boba, mas só quem viveu um grande amor e, de repente, perdeu tudo, vai entender o que estou sentindo.

Ao consolá-lo só  me ocorreu dizer que assinaria embaixo.

 

sábado, 6 de março de 2021

A moça do supermercado

 *Uma crônica  metida a conto.

Foi encantamento à primeira compra no supermercado. Enquanto as mercadorias passavam pelo ritual da caixa, ele se embevecia cada vez mais com os gestos da moça  que atendia naquele ponto. O modo gracioso  como ela pegava  cada produto, o jeito firme de desdobrar as sacolas de plástico e nelas introduzir as compras, cuidando para que tivessem afinidades, os dedos longos, com unhas pintadas de cor  escura,  acionando as teclas dos controles da  sua estação de trabalho e toda a atividade controlada por grandes olhos negros, realçados pela máscara protetora que limitava a visão à parte superior do rosto, aparentemente bem moldado e de pele morena.

O conjunto visível da obra atiçou ainda mais o interesse dele. Duas ou três tatuagens ornavam aqueles braços ágeis.  O cabelo liso castanho, era preso com um coque, comum a todas as outras moças, assim como o enfeite que arrematava o arranjo na cabeça. Mas no caso da   musa do varejo o resultado parecia feito só para realçar o charme dela.  Ficava imaginando como seria de corpo inteiro, já que  operava sentada, confinada e enfileirada como as parcerias de oficio, sem permitir uma visão mais ampla dos predicados estéticos da cintura para baixo. Isso pouco importava porque o que lhe fazia bem era a imaginação aguçada.

O dedo anular da mão esquerda portava uma aliança, ou seria um anel?  Mais imaginação correndo solta. A aliança significava um compromisso afetivo ou era uma forma de afastar tiozãos assediadores, como ele? Teria ela um relacionamento sério no melhor estilo  das redes sociais ou estaria à espera de um grande amor ou, ainda, na melhor das hipóteses, pensou, seria livre, leve e solta? Que histórias viveria além da firma? Voa pensamentos, voa!

O nome no crachá remetia às personas dos apps, Alexia, mas a voz era  extremamente suave, mesmo quando  perguntava:

- O senhor vai querer CPF na nota?

Só o que destoava na garota era aquele “senhor”.

Ele passou a frequentar o mesmo  supermercado mais do que devia e o efeito na sua conta bancária logo se fez sentir. Uma forma de chamar a atenção de Alexia foi adquirir produtos caros, de preferência importados, especialmente sugestivos vinhos e espumantes, as vezes cervejas de nomes estranhos, como quem esperava o momento adequado para indagar.

- Gostas de beber um espumante? Ou prefere uma cerveja?

Então, animou-se e  junto com o dinheiro das compras, deixou um bilhete. “Me liga (...). “, acompanhado do número do  celular.  Quando veio a esperada ligação, estava tudo  programado na mente dele: o convite para um encontro, a pronta aceitação e também de pronto, depois do happy regado a espumante rosê, já estavam dividindo a cama  num motel próximo ao emprego dela. Tudo o que ele imaginara em realizar  e mesmo o que nem imaginara, iria acontecer,  porque estava diante de um furor em forma de mulher e amante.   A noitada só terminou de madrugada quando se aproximava o turno dela no supermercado, mas  ele ainda insistiu em um último  e rápido embate sexual mesmo que ela estivesse vestida e pronta para partir. Rapidamente ele tomou a iniciativa de despi-la e quando começou o ritual, a imaginação, que já  voava bem alta, foi desfeita de repente:

- Senhor, senhor, vai querer CPF na nota?

- Hein? O quê? CPF? Ah, não precisa, obrigado.

Levemente ruborizado, como quem fora flagrado num ato obsceno, recolheu as compras e saiu da loja, enquanto exibia um sorriso maroto, que aos  olhos dos circunstantes parecia não fazer sentido. Mesmo com o sonho desfeito abruptamente, estava feliz pela sensação de ter vivido uma inesquecível aventura amorosa com Alexia. Até  gostaria de repetir a aventura,  mas por via das dúvidas nunca mais voltou aquela loja. Alexia, como as vozes femininas dos apps, definitivamente jamais se corporificaria por inteiro diante dele.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Méritos que não tive

Não foram poucas as vezes em que ouvi esta afirmação lá em casa:

- Este menino trabalha no Correio do Povo!

Era o coronel Dastro, meu pai, brigadiano de formação, orgulhoso do filho jornalista e exibindo-se para os visitantes. Nem eu era mais um  menino, nem trabalhava no Correio do Povo. Na  verdade, eu escrevia na extinta Folha da Tarde ou atuava na Rádio Guaíba, também na antiga Caldas Junior, mas quem tinha prestígio mesmo junto ao velho senhor era o Correião, já centenário  à época.

Nas primeiras vezes tentava timidamente repor a verdade diante das visitas, às vezes constrangidas com a revelação, outras vezes compartilhantes do orgulho de um pai com seu filho. Com o tempo, deixei transitar sem desmentido aquele emprego honorário em que o coronel Dastro insistia em me colocar. Que mal havia nisso?  Entretanto, jamais trabalhei no Correio do Povo e, assim, menos para o meu pai, ficou uma lacuna na minha carreira, pontuada pela participação nos principais veículos de comunicação de Porto  Alegre, em alguns casos, mais  de uma vez. 

Também nunca tive matéria editada na afamada revista Ícaro, da antiga Varig, mas houve um  tempo em que recebia  muitos elogios  pela autoria de textos e fotos naquela publicação. Só que a minha relação com a Ícaro era apenas de leitor, um leitor invejoso das qualificadas participações do jornalista e professor Flávio Dutra.  De início, tratava logo de desmentir a autoria.  Com tempo passei a não negar e também não assumia ser o autor, limitando-me a um sorriso de satisfação, até para não frustrar o interpelante. Sorry, tocaio.

Porém, nem tudo é  elogioso na relação com meu homônimo. Já fui xingado por posições políticas dele, como se fossem minhas e, pelo que sei, nem somos muito alinhados nesse caso. Outra situação, menos polêmica e que já descrevi em outro texto mas vale repetir, envolveu um querido amigo que, vendo anunciado na mídia  uma exposição  do Flávio Dutra, compareceu ao vernissage,

 Chegando cedo, acompanhado da mulher,  estranhou não conhecer os outros presentes (“Imaginava que o Flávio Dutra tivesse amigos mais fiéis”, admitiu que pensou na ocasião) e ficou aguardando, entre drinques e canapés,  a chegada do principal personagem do evento.  O tempo foi passando e nada do Flávio Dutra aparecer.  Duas taças de vinho e meia dúzia de salgadinhos depois,  nosso amigo se animou a perguntar:  “E o Flávio Dutra quando chega?” Foi então que descobriu que dono daquele espaço e momento, era o Flávio Dutra artista, que  já se encontrava há muito tempo no recinto, recebendo os merecidos cumprimentos pela mostra fotográfica. Só restou ao bem intencionado intruso também cumprimentar o autor e sair de fininho antes que a gafe fosse ampliada.

Hoje, só o que me causa constrangimento é ser chamado de  escritor ou de cronista. Sou um mero blogueiro que transforma seus textos em livros.  Juro que não é falsa modéstia. Se ao menos publicasse minhas crônicas no Correio teria as benções, de onde quer que se encontre, do orgulhoso coronel Dastro.

 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Arlequim, Pierrô e Colombina no Porto Seco

 * Inspirada em fatos reais

Os carnavais de Porto Alegre são fonte de muitas histórias que vão além dos chamados festejos momescos. São histórias  de paixão de  mestres-salas e porta-bandeiras, de piratas do amor e mascaradas enfeitiçadas, de passistas e batuqueiros da emoção, de reis e rainhas disponíveis para uma noitada ou até mesmo entre assistentes mais afoitos. O Porto Seco, sambódromo na zona Norte de Porto Alegre, tem muitos refúgios à espera dos amantes. Para esses personagens a noite é  sempre criança, a vida é um eterno Carnaval e as relações que se entrelaçam produziriam animados sambas-enredos.

Os desfiles, mesmo repetitivos e cansativos, propiciam novos relacionamentos conectando os figurantes da pista entre si ou com os observadores das arquibancadas. Aquele olhar mais persistente e incisivo garante um encontro mais adiante e promissores reencontros. Ah, eu já vi tanta coisa.

Foi o que aconteceu com nosso amigo Breno, atilado repórter de tradicional emissora da Capital, escalado para a cobertura dos desfiles do grupo principal do Carnaval do Porto Seco. O posto dele era a concentração e isso lhe garantia a proximidade com os integrantes de todas as alas, mas especialmente com os destaques das escolas e, mais especialmente ainda, com a profusão de destaques femininos. Nesse espaço de tentações o inevitável aconteceu: Breno fixou o olhar na deslumbrante rainha de bateria, uma descomunal morena, adornada por um minúsculo tapa-sexo, moça sarada de pernas alongadas, bumbum saliente, seios tipo comissão de frente. Foi encantamento à primeira vista e, melhor ainda, correspondido por aquele verdadeira  majestade dos requebros do samba.  Iracema era o sugestivo nome da deusa.

Naquela noite mesmo, ele deu um jeito de trocar de posição com o repórter escalado para a dispersão e assim que  terminou o desfile da escola de Iracema, lá estava ele a postos para a  entrevista “com a mais bela rainha de bateria de nosso carnaval”, como anunciou, sem precisar exagerar. A entrevista excedeu o tempo previsto, mas a moça estava receptiva às perguntas do enamorado repórter e respondeu a tudo de pronto, mesmo as questões de duplo sentido, que buscavam salientar os dotes físicos da agora rainha do seu coração.

Entretanto, não foi nessa noite que o casal em formação realizou na prática o enredo erótico para o qual estavam destinados. É que havia um terceiro personagem, como no triângulo amoroso envolvendo Arlequim, Pierrô e Colombina. O companheiro de papel  passado da colombina do Porto Seco era o puxador de samba de uma escola adversária, que logo encostou na moça, como se fosse propriedade sua e precisasse demarcar o espaço para evitar a aproximação de eventuais interessados em dividir aquele corpão. Era um moreno atarracado, bombado de academia e dono de uma voz forte e bem modulada, como se  requer para sustentar o samba na avenida.

Fisicamente, Breno, de estatura mediana, nem magro, nem gordo, não seria páreo num enfrentamento às ganhas com o sujeito das cantorias, agora um adversário a ser batido na disputa pelo coração e algo mais da rainha de bateria.

A vitória do desafiante aconteceu no fim de semana seguinte, no desfile  das campeãs. A escola da moça se classificara entre as primeiras e o destino mexeu os pauzinhos e deixou fora do desfile a escola do puxador, que teve notas baixas inclusive no samba enredo. Tudo conspirava a favor de uma noitada inesquecível. O melhor da festa é esperar por ela, diz o ditado, e assim foi para Breno, pura ansiedade e tesão ao ver passar a escola de sua nova amada  e ela saracoteando, cheia de energia e erotismo, em frente ao frenético baticumbum da bateria. Assim que terminou o desfile ele abandonou o posto na transmissão e se apresentou à musa. Sem trocarem uma palavra sequer, rumaram já num agarramento para o barracão da escola e num canto reservado, protegidos por um grande carro alegórico, eles se empenharam em não atravessar a relação. Com receptividade dela e entusiasmo dele, foram percorridas todas as alas daquele corpão.

- No início pensei que não ia dar conta de todo aquele esplendor de mulher, mas me superei e consegui, com louvor. Claro que ela ajudou e como! -, confessou ele mais tarde.

A transa só não teve repeteco naquela  noite porque o maridão, derrotado na avenida e traído na vida conjugal,  já procurava Iracema, que logo se recompôs para não dar na vista o que tinha ocorrido atrás do carro alegórico. Mas começava ali um  período glorioso de escapadas. E Breno se superando a cada encontro, porque a sensação de perigo e de contravenção aumentava o entusiasmo, mesmo que ele descobrisse mais tarde que o parceiro oficial da namorada parecia não se importar muito com as aventuras extraconjugais de Iracema, já que frequentava outras amizades femininas em várias escolas, do grupo principal ao acesso, passando por outras índias das tribos que ainda sobreviviam.

Não cabe entrar em detalhes mas a dupla se esbaldou por todos os cantos da cidade, numa maratona de motéis, apartamentos emprestados e até nos bancos da maltratada Brasília dele. Viviam o êxtase dos casais recém formados e nessa condição trocavam amabilidades bobas. Ela o chamava, por exemplo, de “meu repórter tesudo” e ele devolvia com um “cabrocha  arretada”, mesmo que a referência a “brocha” pudesse remeter a uma lembrança incômoda, mas os temores dele nesse sentido foram afastados desde o primeiro  encontro. Na verdade, era uma forma de afirmação, admitiu depois.

Quem se importava com este relacionamento era a mãe do  Breno. Jovem ainda, ele morava com a família. Uma família conservadora, que não admitia uma relação entre homem e mulher que não fosse dentro do casamento, no civil e no religioso. A mãe, senhora de comportamento ilibado, diferente do rebento trêfego, era a zeladora dos bons costumes. E foi dela que partiu um ultimato ao Breno: ou parava com a relação pecaminosa ou não teria mais lavadas e passadas suas camisas, roupas compradas com muito esforço e conservadas com carinho. Mais:  ameaçou nunca mais fazer aqueles bifes à milanesa e a sobremesa de ambrosia que tanto agitavam as papilas gustativas dele.

Breno não atendeu ao ultimato, se rebelou ostensivamente e continuou frequentando sua colombina, em sucessivos eventos pós-Carnaval, apelidados de “festivos e agitados enterros dos ossos.” Mas já não mostrava a mesma alegria de  antes, virou melancólico, quase depressivo, enquanto se queixava para os amigos mais íntimos:

- Ninguém passava minhas camisas como mamãe. Virei um molambento. E o rango lá em casa é só miojo ou carreteiro e sagu de sobremesa. Bah, tá complicada minha vida.

Não demorou muito, o que era uma linda história de amor, acabou encerrada diante do boicote dos serviços prestados pela mãe do rapaz. E Breno, de esperto Arlequim, virou um Pierrô, o mais pobre dos personagens desta intriga amorosa inspirada na Commedia dell’Arte  e só não vestiu roupas feitas de  saco de farinha, como na encenação original, porque a mãe voltou a lavar e passar suas camisas com o fim do caso. Já a nossa Colombina, ao que  consta, voltou para seu Arlequim original,  à espera de novos carnavais e do assédio de outros Pierrôs. Só que agora não saracoteia mais diante da bateria, eis que os anos pesaram e ela foi transferida para a ala das baianas. Para Bruno, hoje recatado cidadão, restaram somente as lamurias nostálgicas:

-Ah, já não se fazem mais Carnavais como antigamente. Agora, todo dia é Quarta-feira de Cinzas.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Sem pressa de chegar lá

Não tenho medo da morte, mas temo  pelo esquecimento a partir do segundo dia depois que virar um montinho de cinzas.  No dia do meu passamento parece que estou vendo aquele festival de cinismo nas redes sociais, as palavras de solidariedade, a recordação de um ou outro momento de convivência, lembranças de ações de que participei tratadas de forma exagerada, e muitos elogios à pessoa exemplar e ao profissional competente que eles acreditaram que um dia fui. Algum desafeto poderá citar algo em desabono, mas o mauca vai pegar leve porque haverá retaliação dos amigos de fé, que também os tenho. Não faltarão postagens de emogis lacrimejantes, coraçõezinhos partidos e até, de alguém distraído, um dedão de positivo.  

Ex-amores se manifestarão, algumas discretamente, outras mais expansivas, entre  elas as que comparecerão ao velório  para um emotivo adeus final ou, no outro caso, para ter certeza de que o sem-vergonha morreu mesmo.  A personal funeral que já contratei cuidará para que não haja confusão com elas.

Enfim, viverei,  aliás, morrerei um ou dois dias de glória nas redes sociais, com direito a um cerimonial concorrido e agitado de encerramento de atuação neste vale de lágrimas. Talvez mereça um obituário de 20 linhas na ZH com uma fotinho – espero que escolham uma de boa aparência.  Depois virá  o silêncio, o esquecimento.

Faço estas considerações, morbidamente debochadas, para atenuar o impacto da perda de queridos  amigos e amigas, al.guns mais jovem do que eu, que vem ocorrendo com uma frequência inquietante nesta quadra da existência que, com o  acúmulo de anos, é naturalmente finaleira. Com cada um que se foi tive uma história da nossa convivência para contar, a maioria delas prazerosas  e divertidas e é isso que pretendo guardar na memória, para que o esquecimento não macule a memória do companheiro que nos deixou.  Se existe outro plano, é certo que ainda nos encontraremos. Só espero que demore bastante. Nada pessoal. É que não quero ser esquecido tão  cedo, por isso vai um viva a vida!

domingo, 24 de janeiro de 2021

JOYCE LARRONDA E UMA INESQUECÍVEL 12 HORAS DE TARUMÃ

O domingo ensolarado traz a triste notícia da morte da jornalista Joyce Larronda, com a qual tive a satisfação de conviver na editoria de esportes da Zero Hora, eu em início de carreira e ela já profissional reconhecida como editora da Automobilismo, isso nos idos dos anos 1970. Era um período frenético de cobertura esportiva, com um maluco talentoso, Cói Lopes de Almeida, no comando da editoria.

Até hoje lembro de uma das primeiras grandes coberturas em que me envolvi, por indicação da Joyce: as então prestigiadas 12 horas de Tarumã. Também iniciante na editoria, o saudoso Amauri Mello e eu fomos escalados para reforçar a cobertura da prova, que começava a meia noite. Como pouco entendia de automobilismo competitivo, pedi instruções à Joyce, que sugeriu que fizesse uma matéria de ambiente e planilhássemos os problemas de cada carro que entrasse nos boxes. E assim, noite adentro e na manhã seguinte, Amauri e eu percorremos a área dos boxes em Tarumã, questionando cada piloto em sua parada, o que resultaria em matéria depois. Foi quando, no meu caso, o desconhecimento da questão central da cobertura aflorou, assim que o garotão do Simca amarelo entrou nos boxes, abandonando a prova.

- Qual o problema?,- questionei

- Acabou a corda, respondeu o piloto.

Certo de que se tratava de algum desajuste do virabrequim, anotei a informação, até ser interrompido pelo atônito rapaz,

- É brincadeira, brincadeira. Foi outro problema, - explicou o rapaz.

Claro que a Joyce, ao editar o material, evitaria o vexame do jovem repórter, mas divertiu-se, junto com o Cói, quando, envergonhado, relatei o episódio. Em compensação, a matéria de ambiente, contando especialmente a movimentação durante a noite em Tarumã, foi publicada e mereceu elogios.

Agora me dou conta de que dos quatro jornalistas aqui citados, apenas eu sobrevivo com estas memórias. Fica a imensa saudade do Cói, do Amauri e agora da Joyce.